terça-feira, 22 de setembro de 2009

VIZINHOS


Eram novos no prédio.


Recém chegados de uma cidadezinha do interior onde o edifício mais alto era motivo de controvérsia, pois uma parte da população dizia que era um prédio de quatro andares, contando o térreo, onde uma grande loja já abrigara todo tipo de estabelecimento comercial e hoje sedia uma igreja, enquanto outra parte, dita mais viajada, insistia que o térreo não conta e que, portanto, o edifício deveria ser considerado como de três andares. Por via das dúvidas o construtor “numerou” os apartamentos e salas comerciais com letras e a fiscalização da prefeitura adorou não ter que entrar formalmente na discussão sobre a quantidade de andares de tal prédio.

Mas nosso jovem casal acabara de transferir-se para a cidade; ele para tomar posse na repartição pública em que ingressava após ser aprovado muitíssimo bem colocado no último concurso público; ela, acompanhando o marido, casados de pouco que estavam, buscando uma forma de concluir os estudos e quiçá conseguir um emprego decente, para ajudar no orçamento familiar e ocupar o tempo.

O apartamento era um quarto e sala num prédio antigo de oito andares, quatro por andar, localizado em um bairro classe média baixa (no tempo em que isso ainda existia, só pra ter uma idéia do quão antigo era o prédio). A única janela, no quarto do casal, dava vista para lugar nenhum, mas ainda que vislumbrassem o Taj Mahal ou o Corcovado permaneceriam perenemente fechadas, sob pena de acordarem os habitantes soterrados pela poeira preta do asfalto da autoestrada que passava ali nas cercanias.

O pequeno banheiro e a minúscula área de serviço possuíam basculantes que davam para a clarabóia do edifício, de onde chegavam os sons mais variados: algo que parecia ser um papagaio palrando 24 horas por dia em um andar incerto e que, apesar do incômodo e do vocabulário pouco recomendável para menores, trazia doces recordações dos fins de semana no sítio da Vó Nenzinha; uma rádio que permanecia sintonizada por todo o período matinal em um desses programas que só fazem rezar e vender produtos religiosos (o que já trazia recordações da Vó Aparecida e seu indefectível coque); falatórios e mais falatórios, nos mais variados temas (embora não fosse possível distinguir nenhum deles) e tons de voz.

O prédio parecia ter vida própria e ela, enquanto não aparecia o tão esperado emprego e na falta de companhia em seus intermináveis dias solitários confinada no apartamento, dedicava-se com cada vez mais afinco a decifrar a linguagem do lugar, primando por emprestar um rosto, uma personalidade e um temperamento a cada um dos sons que lhe chegavam aos ouvidos.

Já possuía um perfil psicológico detalhado do papagaio e agora debruçava-se sobre uma senhora que tossia muito e parecia se chamar Taciana ou Cassiana, provavelmente no 703.

Mas o que lhe intrigava mesmo era o completo e absoluto silêncio que chegava do apartamento imediatamente superior, o 402. Estava convicta de que um silêncio assim tão eloqüente não se poderia obter naturalmente, mas apenas por quem quisesse ocultar alguma coisa. Nunca ouvira um ranger de porta, uma descarga, um arrastar de móveis, nada que pudesse denunciar a presença de seres viventes naquele apartamento, o que, sem a menor sombra de dúvida, indicava claramente que quem quer que vivesse ali, fosse uma ou várias pessoas, não dava mesmo pra precisar, movia-se com extrema delicadeza para não chamar atenção.

Era cada vez mais freqüente ele chegar do trabalho e encontrá-la com os olhos semicerrados, encostada à basculante que dava para a clarabóia, absolutamente imóvel.

- Meu bem, o que está fazendo aí?!

- Pst!!! Fale baixo! Estou escutando o silêncio do 402.

Ele riu. Sabia que a adaptação à cidade grande estava sendo difícil para ela. Mas recusava-se a compactuar com aquilo e sempre fazia questão de responder em seu tom normal de voz, que nunca fora muito alto, mesmo:

- E enfim conseguiu arrancar algum som do nosso famigerado vizinho?

- Nada. Isso é muito suspeito.

- Meu amor, daqui a pouco você vai estar achando que o apartamento de cima é ocupado por agentes terroristas ou um espião a serviço de Sua Majestade.

- Claro que não, amor. Isso é coisa de gente esquizofrênica.

Ele estava cansado demais pra discutir aquilo outra vez. Até o momento, o máximo de incômodo prático que a nova esquisitice da mulher lhe estava causando era um silêncio quase mortal, ou, quando muito, uns gemidos abafados pelo travesseiro, na hora de fazer amor. Mas nada que comprometesse o funcionamento dos dois como casal. E conversar com a mulher falando aos sussurros não era de todo mau.

Até o dia em que ele chegou em casa do trabalho, cansado como sempre, no mesmo horário de sempre, e encontrou uns garranchos rabiscados às pressas com batom vermelho escuro no azulejo branco da cozinha:

“MEU AMOR, NÃO SUPORTO MAIS ESSE SILÊNCIO. PRECISO FUGIR. NÃO ME POCURE. ENCONTRAREI UMA FORMA DE ENTRAR EM CONTATO. EU TE AMO! P.S. – CUIDADO!!!”

Ele esfregou os olhos, releu, percorreu os dois cômodos da casa, procurando; quem sabe ela, que não era dessas coisas, não resolvera lhe pregar uma peça? Em vão. Tudo estava na mais perfeita ordem, mas nem sinal da mulher.

Correu para o telefone, ligar pra rodoviária, pra polícia, pro manicômio e sei lá pra onde mais e, por último, pra mãe dela. Podia até ver pelo telefone seu ar de misto de quem reprova uma informação recebida e confirma uma tese há muito esperada; cara de “eu sabia”…

Enquanto isso, do outro lado da rua, uma senhora olhava para cima e tentava ler a placa já meio enferrujada, displicentemente amarrada à grade da janela do 402:
“IMOBILIÁRIA AZIMUTE – VENDE OU ALUGA – TEL: 5555 1234”