terça-feira, 12 de janeiro de 2010

O OUTRO





Tão absorto estava, em frente à tela irritantemente branca do computador, que perdeu a noção do tempo.



As muitas palavras que começava a digitar, a esmo, e invariavelmente apagava, não traziam nenhuma idéia brilhante à mente. Era tudo um vazio. O máximo de agitação que conseguia era o piscar lento e previsível do cursor.



Por isso o susto, quando, ao levantar os olhos do monitor, deparou-se com um homem sentado à sua frente, fitando-o com dissimulada desatenção e um sorriso irônico no rosto.



- C-como você entrou aqui?!



O outro arqueou uma sobrancelha e alargou alguns milímetros o sorriso irônico.



- Curioso… A maioria das pessoas se preocuparia, primeiro, em perguntar 'quem é você'…



- Não sou como a maioria das pessoas. E não desconverse. Responda à minha pergunta.



- Por que tamanho interesse em saber como cheguei até aqui?



- Ainda não terminei com as minhas perguntas, para que você possa começar a fazer as suas. Mas vou responder, pra não perder o gancho (ritmo é tudo): para que eu possa colocá-lo pra fora pelo mesmo caminho por onde veio. Mas, caso fique muito difícil ou maçante descobri-lo, a janela é sempre uma boa opção. – estavam no oitavo andar, era pra ser uma ameaça e tanto.



O outro continuava impassível, apenas sorrindo.



- Calma! Sem violência, que não somos disso e você sabe muito bem. Desejo apenas que tenhamos uma conversa produtiva, sem filosofices. – enquanto falava, abaixava-se para apanhar uma maleta de cromo alemão, lustrosa como ele nunca vira antes, com fechos que pareciam de puro ouro, que deixara aos pés da cadeira em que se sentara. – Eu não cheguei até aqui. Eu simplesmente estou aqui a todo instante. Aqui e onde quer que você se encontre, eu também estou, presenciando todos os momentos, dos mais públicos aos mais íntimos. Satisfeito?! Podemos passar agora à segunda pergunta?



- Que vem a ser…



- "Quem é você"…



- Não estou interessado em saber. Se você me acompanhasse o tempo todo, como diz e eu não acredito, saberia muito bem que esse tipo de pergunta, no meu entender, não passa de uma monumental perda de tempo.



- Por que pensa dessa forma?



- Porque invariavelmente as pessoas vão responder baseado em quem elas acham que são, ou, pior, quem elas gostariam de ser, esmerando-se em ocultar vícios, medos e mazelas que sempre têm, e em descrever virtudes e poderes que muito raramente condizem com a realidade. Por outro lado, se eu perguntar ao seu maior inimigo, caso reconheça que os tenha, o que seria surpreendente, este tomará o cuidado de desfiar um rosário de defeitos que, mesmo que você os tenha, eu prefiro descobrir pessoalmente, caso esteja interessado na sua pessoa. E, caso eu faça a mesma pergunta ao "seu" Severino, que, se cumprisse corretamente as suas obrigações, deveria tê-lo barrado na portaria do prédio, ele com certeza dará o melhor de si para descrever a sua aparência, altura, peso, tipo de roupa, etc. Mas isso tudo eu posso ver com meus próprios olhos. São opiniões, e estas acrescentam muito pouco à realidade.



Enquanto escutava tudo, com a mesma cara, sem se alterar, o outro retirava da pasta um volumoso livro. Capa dura e luxuosamente trabalhada, lombada com fímbrias douradas e vermelhas e grosso como uma Bíblia. Pousou delicadamente o livro sobre a mesa, sem tirar os olhos do interlocutor. Este sentiu um desejo imenso de interromper o que estava falando para perguntar "que livro é esse", mas não podia parar no meio de sua explanação. Ritmo é tudo. Continuou, agora com os olhos perscrutando o livro:



- Podemos conviver anos, até mesmo a vida inteira, com uma pessoa, sem que nos demos conta de quem ela realmente é. Aliás, acredito, mesmo, que a isso se deva a longevidade de alguns relacionamentos.



Fez uma pausa para tomar fôlego. Seus olhos moviam-se rapidamente entre o livro sobre a mesa e os olhos do outro. Prosseguiu:



- Estou certo, mesmo, de que a dificuldade na busca do autoconhecimento seja um fator preponderante à sobrevivência da espécie humana…



- Isso me parece novo. – O outro o interrompeu. – Adoraria ouvir a explicação…



Ele se encheu de razão e vaidade, estufou o peito e retomou a fala, em tom quase professoral:



- Nós, os seres ditos pensantes, passamos uma vida inteira vasculhando nosso íntimo, em busca de respostas para 'quem somos', 'de onde viemos', 'para onde vamos', 'por que vivemos' e algumas outras perguntas. Uma vida inteira, ao cabo da qual permanecem as interrogações. Penso que se nos fosse dado o poder de responder à primeira pergunta, 'quem somos', num dado momento da vida, deste momento em diante a convivência conosco mesmos se tornaria insuportável, um fardo excessivamente pesado para se transportar indefinidamente…



- É uma visão interessante, embora um tanto pessimista…



- Digamos que seja fruto de anos de observação desapaixonada e honesta, na medida do possível. E, é claro, que não se aplica aos seres que se pensam pensantes, essa gente que tem espelho mágico em casa…



O outro movia lentamente as mãos, simulando um aplauso silencioso:



- Bravo! Estamos ficando bons nisso. Mas, baseado no que acabou de me explicar magistralmente, também não vá querer perguntar que livro é esse… - e fez menção de apanhar o livro para retorná-lo à pasta.



- Livros e pessoas são muito diferentes. Que livro é esse, afinal de contas?! – rendeu-se.



- Este é o seu livro. Aqui estão reunidas todas as idéias brilhantes que você já teve e nunca pôs no papel. E este é apenas o primeiro volume. Tenho mais onze destes aqui na minha pasta, os últimos, inclusive, com as idéias que você ainda terá, mas não escreverá. – apalpou a pasta, com um brilho nos olhos.



E olhou para a pasta. Era impossível que ela contivesse doze livros daquele tamanho. Na verdade, era impossível mesmo que aquele livro tivesse saído de lá. Mas no meio de tantas idéias absurdas, aquela era uma das menos relevantes.



Olhou bem para a cara do outro, medindo-o de alto a baixo, embora estivesse sentado. Reparou bem na fisionomia, que decerto não lhe era estranha. Aqueles olhos miúdos, aquele cavanhaque, o corpo bem feito, atlético e malhado que se podia adivinhar por trás do blazer preto de grife e, principalmente, aquele sorriso malicioso. Sem dúvida, conhecia aquele homem de algum lugar, mas não conseguia se lembrar de onde (isso sempre acontecia).



- Bom, muito bom. Agora só falta você vir me dizer que é o… Você sabe quem… Aquele. E que veio comprar minha alma.



- Aquele aquele?



- É, aquele mesmo…



- Céus! Há quanto tempo você não se olha no espelho?! – ele não se lembrava. – Não é nada disso que você está pensando. Não consegue perceber as semelhanças entre nós?! Eu sou o você que daria certo, caso você fosse como eu sou, entendeu agora?



Ele então reparou bem no outro e viu que havia, realmente, muitas semelhanças. Era como se o outro fosse ele com a mesma idade, porém aparentando dez anos menos. Bem trajado, altivo, cabelos bem cortados, uns 10% menos de gordura corporal e aquele sorriso vitorioso de dar nojo em escritor de auto-ajuda.



- Sei. E o que você quer? Pode parar com essa lengalenga de proposta irrecusável e vamos direto ao assunto.



- Vim lhe oferecer os livros contendo todas as idéias geniais que você teve e ainda terá, em crônicas, poemas e até alguns romances. Sucesso garantido de crítica e público. Tudo dentro das normas, revisado conforme as normas ortográficas vigentes. É só publicar. O pacote inclui os contratos com as editoras e umas duas entrevistas no Jô.



- Interessante. Mas quanto isso vai me custar?



- Tudo isso pelo módico preço da sua alma. E nem precisa entregar agora. Pense bem, estou lhe oferecendo algo que você sempre buscou em troca de uma coisa com a qual você nunca se preocupou.



Ele levantou-se da cadeira, esfregou as mãos suadas.



- É tentador. Mas eu não estou interessado. Agora, se puder me dar licença, eu preciso trabalhar.



- C-como assim, não está interessado?! É a oportunidade da sua vida!



- Mas eu não estou interessado. Não estou nem certo de ter uma alma e, mesmo que tivesse, duvido que pudesse valer grande coisa. Agora, faça o favor de se retirar.



- Você não entendeu nada do que eu disse?! Eu não tenho como me retirar. Eu existo aqui, ao seu lado e estou irremediavelmente ligado a você até o fim. Por mais que eu quisesse, eu não consigo me afastar…



Ele aproximou-se, agarrou o outro pelo colarinho e pelos fundilhos.



E, sob gritos e protestos desesperados, atirou-o pela janela.



A pasta teve o mesmo destino, logo em seguida.



- A proposta não me interessa… Mas fico com o personagem…