quinta-feira, 5 de agosto de 2010

DO LADO DE LÁ




Abriu os olhos como os fechara: lenta e calmamente.


Por mais que estivesse sem os óculos, percebeu que se encontrava num local totalmente diferente daquele onde se deitara na noite anterior. Aliás, pela primeira vez em muitos anos sentia não precisar dos óculos, que invariavelmente eram a primeira coisa que procurava ao despertar, mas isso só veio a perceber mais tarde. Chamavam-lhe muito mais a atenção a brancura de tudo naquele ambiente onde abrira os olhos, das paredes ao piso, da mobília simples à porta, que pareciam refletir uma luz calma e cálida, como a paz que sentia no regaço de Pilar (onde estaria ela?!).


Enquanto cismava, e quando se cisma não se sabe quanto tempo passa, a porta, branca, como todo o mais, abriu-se lentamente, não sem antes receber dois leves toques com o nós de dedos muito suaves, dando passagem a um jovem distinto, que juventude é o que mais se encontra por aí, quando se passa dos oitenta; já distinção… o jovem cumprimenta-o com um sorriso sinceramente cordial no rosto, pergunta-lhe como se sente e informa que o esperam em outra sala para uma importante palestra. Ele simplesmente segue por onde aponta o rapaz, sem sobressalto, que aos oitenta e tantos muito mais já terá visto para com tão pouco se surpreender, vindo a dar num corredor amplo e bem iluminado, ao qual confluem muitas portas brancas e ao término do qual adentram numa sala ampla, onde os recebe um homem vestido com apuro e simplicidade, na casa dos cinqüenta, levantando-se com deferência e alegria ao vê-los chegar. Agradece ao que parece ser o assistente, dispensa-o respeitosamente e estende a mão para cumprimentar o visitante que, ato contínuo, toma-a, sentindo-a firme, amigável e quente.


Convidado, sentou-se e ficou à vontade, passando rapidamente os olhos na ampla estante coberta de livros que se situava às costas do homem que o recebia, onde pôde perceber os mais variados títulos ligados às religiões universais, filosofia, história e histórias as mais diversas, como se ali se encontrassem as mais importantes obras já registradas pelo conhecimento humano.


Sem delongas nem titubeios, apresentou-se de maneira simples e cordial, ressaltando que há muito que ansiava por revê-lo, ao que ele não pôde deixar de interpelar:


- Sinto muito, mas o senhor disse rever-me?!


- Foi exatamente o que eu disse. Por mais que não te lembres, não é a primeira vez que nos encontramos. E te garanto que não será a última.


- Eu quase me deixo render à tentação de usar o clichê "não creio no que meus olhos vêem", mas se não me vali de tais recursos até a presente altura da vida, não é agora que o faria. E, por falar nisso, esta sala, o senhor, esta agradável palestra que estamos tendo, por acaso significariam que eu morri?


- Por acaso é como te sentes?! Morto?!


- Honestamente, nunca me senti tão vivo.


- Pois. Nunca foste homem de crer no que te dissessem. Crê, então, no que por ora vês. E principalmente no que sentes, que às vezes é de se confiar muito mais.


- Creio, portanto, que, sendo quem dizes que és, e quem sou eu para descrer, se assim também o sinto, creio que lhe deva escusas por algumas poucas e boas que andei a dizer lá por baixo.


- Escusas?! – ar de surpresa consternada – Por mais que esquadrinhe e reesquadrinhe os arquivos de tudo o que deixaste dito ou escrito, ou mesmo subentendido, não vejo motivo nenhum para que te escuses.


- Bom, mas asseguro-te de que muitos de teus representantes lá embaixo não partilharão desta tua opinião. Acreditam que minhas palavras, comentários, crenças ou descrenças, foram de grande nocividade à Humanidade inteira e, se tal existisse, folgariam no momento em saber que ardo nas chamas do inferno.


- Em primeiro lugar, creio que seja desnecessário esclarecer que muitos daqueles que se intitulam meus representantes não reúnem sombra das qualidades necessárias para desempenhar tal papel; que muito ainda lhes falta para tanto. Crês nisso, estou certo, daí tuas críticas e alfinetadas. Ademais, sabemos todos, e o simples mencioná-lo faz sangrar meu coração, quantas atrocidades já andou a cometer o homem, supostamente em meu nome e com meu aval.


- Ora, pois. E eu não sei quantos desejaram, secretamente ou nem tanto, verem-me arder numa grossa coluna de fogo? Graças a Deus vivemos em outros tempos.


- Por mim, lhe asseguro que tais tempos nefastos jamais haveriam existido. Entretanto, asserena-te, que todas as ofensas tomadas em meu nome, por lá mesmo ficaram. No meio de tanta maldade que ainda teima em grassar, tanta intolerância, torpeza e ganância, não seriam teus engenhosos jogos de palavras que me haveriam de provocar qualquer sentimento negativo. Os que os acolheram por ofensas, pessoalmente o fizeram. A mim nada tens de que te escusares.


- Folgo em sabê-lo. Afinal de contas, não me seria nada agradável carregar tal fardo pela eternidade.


- Ora, mas quer dizer que em eternidade crerás? E que por aqui quedarás a contemplar, comer maçãs e chupar uvas com os anjinhos? Para um descrente, até que me estás saindo melhor que a encomenda. – e um riso largo e gostoso se lhe estampou no rosto.


- ?!?!


- Se lá embaixo jamais te deleitaste com o ócio e a beatitude, não penses que aqui será diferente. Isto, sim, seria o inferno para ti. Preciso de tua língua ferina, de tuas palavras lépidas, de teus pensamentos sagazes, a seguirem abrindo os olhos dos homens que pecam por crer demais e em tudo. Por ora, preparas-te. Chegada a hora, voltas.


- Voltar?! Será possível que acabo de ouvir isto?


- Sim, ouviste muito bem. Agora que crês em mim, será possível que não me creias.


- Perdoa-me, mas é informação demais para um só dia.


- Não importa. Espera e verás…