De repente lhe invade as narinas aquele cheiro característico de terra molhada, trazido pela brisa suave da manhã.
Ainda sentado à mesa do café, onde conversavam e conviviam alegremente os visitantes e os donos da casa, preguiçosa manhã de feriado prolongado, ele, rapaz criado desde sempre em cidade grande, habituado ao zunzum incessante dos carros, à total ausência de estrelas no firmamento, a todas as vantagens e desvantagens da tão decantada civilização, por várias vezes rira-se da expressão “cheiro de chuva”. Soava-lhe demasiado simplória, até mesmo folclórica. Pra ele, chuva significava enchente, engarrafamento, encostas desabando nas favelas, caos.
Mas, naquele momento, em que se encontrava alheio a todos os ires e vires da metrópole, internado desde a quarta-feira na distante e isolada propriedade rural daquele primo que há anos não via (quiçá décadas), a única inundação que lhe ocorria era aquele odor, que brotava como do nada, e lhe conduzia de enxurrada a um insight que jamais poderia imaginar: aquele era o cheiro da chuva!...
Tocado de emoção quase filosófica, ou de filosofia quase emocional, que essas coisas são difíceis de se distinguir, murmurou quase pra si mesmo “cheiro de chuva”, seguindo-se um suspiro quase imperceptível, findando num meio sorriso de quem naquele instante encontrava todas as respostas às mais absurdas perguntas da existência humana.
Os circunstantes silenciaram ante aquela cena inusitada. Ele, o racional, o pragmático, quase reacionário, deixando escapar dos olhos um brilho quase infantil. Perplexidade geral. A mulher é a primeira a ousar abrir a boca: “algum problema, querido?!”
“Cheiro de chuva...” – outro suspiro.
“O que tem?!” – mais perplexidade.
“Agora eu entendo... cheiro de chuva! Vai me dizer que vocês não estão sentindo?” - Ninguém ousou discordar. Podia ser perigoso.
E ele, então, enchendo-se de inflamado entusiasmo, qual promotor que pede a pena máxima ao vil réu notório de hediondo crime, começa a discorrer sobre aquele odor ancestral que lhe entra pelas narinas e lhe descortina um universo novo, totalmente desconhecido.
Começa citando a Teoria Criacionista, segundo a qual Deus, no sexto dia da criação, toma o barro do chão, molda um ser a sua imagem e semelhança, que resolve chamar Adão, sopra-lhe as narinas e lhe dá vida, iniciando-se assim o povoamento deste nosso planeta, até então tão calmo e tranqüilo. O barro, mistura de terra e água, como elemento primordial de nosso primeiro ancestral, segundo a tradição judaico-cristã. O barro que gerou Adão, cuja costela gerou Eva, de cujo conúbio todos descendemos, pelo menos assim está escrito. O barro, mistura santa de terra e água, tocado pelo sopro divino e dando início à história de nossa civilização, culminando em tudo isso que está aí. E agora esse cheiro de terra molhada, de natureza em seu estado puro, elementar, a lhe remeter aos mais remotos momentos da odisséia humana, quase ao “fiat lux” de Deus.
Magistralmente salta do Gênesis mosaico para a Teoria da Evolução, de Charles Darwin, e ainda aí encontra o barro como elemento fundamental da cadeia evolutiva humana, descrevendo com garbo e detalhes os primeiros momentos da formação de nosso planeta (ou os segundos, sejamos mais cordatos). E encontra a Terra inundada de um caldo riquíssimo, tépido, onde todos os elementos minerais se agitam à revelia de qualquer ordem, chocando-se ao sabor dos ventos e das chuvas torrenciais, fervendo no calor escaldante das emanações vulcânicas abundantes, assolados pelas incessantes faíscas das tempestades elétricas, profusas e impiedosas. Até que, num dado momento, ao comando do sábio acaso, que é o nome que a Ciência dá ao que ainda não conseguiu elucidar, funde-se a primeira molécula de DNA, unindo-se a um protoplasma, por conveniência ou proteção, dando início à primeira célula viva de nosso planeta, capaz de duplicar-se, reproduzir-se.
Daí, recordando-se de sua professora de Biologia citando aquela lindíssima frase que jamais esquecera: “a ontologia recapitula a filogenia”, era uma questão de pouquíssimo tempo até que células começassem a se reproduzir freneticamente, num frenesi quase orgástico. E dessa reprodução desenfreada começam a surgir colônias de células, organizando-se de acordo com a especialização que seguem, formando-se, assim, organismos cada vez mais complexos. E segue a saga evolucionista, discorrendo com furor e até uma certa propriedade, sobre o caminho e os milhões de anos percorridos, até que o primeiro protozoário viesse a se tornar o ser inteligente que somos hoje. De novo o barro como elemento primordial, sem o qual nada disso teria ocorrido.
Com sua enfática explanação consegue, em alguns minutos, unir a Igreja e a Ciência em torno de um elemento único. E agora parte a convencer os seus interlocutores, dos quais a maioria não está entendendo patavina, de que aquele cheiro que de repente lhe invadiu as narinas é capaz de conduzir o homem, a um só tempo, e eis a grande mágica do fenômeno, os seus primórdios místico e científico.
Mil vivas ao cheiro de terra molhada! Alvíssaras, loas, eureca ao cheiro de terra molhada. Esse elo que nos une ao absolutamente absoluto e ao absolutamente relativo. Esse odor impalpável, que nos une a Deus e à Ciência, na sua angustiante simplicidade de união de dois elementos da natureza.
E quando a platéia está para irromper em aplausos, mais para fazê-lo parar de falar do que exprimindo adesão, Nhá Tereza, em sua sapiência de preta velha de quase 100 anos, que nunca foi mais longe que a igreja do patrimônio, umbigo colado ao fogão, adiantando o almoço, que nunca vi comer tanto igual a essa gente, solta um resmungo lacônico que é mais uma sentença que um diagnóstico:
“Isso pra mim é verme!”
Ainda sentado à mesa do café, onde conversavam e conviviam alegremente os visitantes e os donos da casa, preguiçosa manhã de feriado prolongado, ele, rapaz criado desde sempre em cidade grande, habituado ao zunzum incessante dos carros, à total ausência de estrelas no firmamento, a todas as vantagens e desvantagens da tão decantada civilização, por várias vezes rira-se da expressão “cheiro de chuva”. Soava-lhe demasiado simplória, até mesmo folclórica. Pra ele, chuva significava enchente, engarrafamento, encostas desabando nas favelas, caos.
Mas, naquele momento, em que se encontrava alheio a todos os ires e vires da metrópole, internado desde a quarta-feira na distante e isolada propriedade rural daquele primo que há anos não via (quiçá décadas), a única inundação que lhe ocorria era aquele odor, que brotava como do nada, e lhe conduzia de enxurrada a um insight que jamais poderia imaginar: aquele era o cheiro da chuva!...
Tocado de emoção quase filosófica, ou de filosofia quase emocional, que essas coisas são difíceis de se distinguir, murmurou quase pra si mesmo “cheiro de chuva”, seguindo-se um suspiro quase imperceptível, findando num meio sorriso de quem naquele instante encontrava todas as respostas às mais absurdas perguntas da existência humana.
Os circunstantes silenciaram ante aquela cena inusitada. Ele, o racional, o pragmático, quase reacionário, deixando escapar dos olhos um brilho quase infantil. Perplexidade geral. A mulher é a primeira a ousar abrir a boca: “algum problema, querido?!”
“Cheiro de chuva...” – outro suspiro.
“O que tem?!” – mais perplexidade.
“Agora eu entendo... cheiro de chuva! Vai me dizer que vocês não estão sentindo?” - Ninguém ousou discordar. Podia ser perigoso.
E ele, então, enchendo-se de inflamado entusiasmo, qual promotor que pede a pena máxima ao vil réu notório de hediondo crime, começa a discorrer sobre aquele odor ancestral que lhe entra pelas narinas e lhe descortina um universo novo, totalmente desconhecido.
Começa citando a Teoria Criacionista, segundo a qual Deus, no sexto dia da criação, toma o barro do chão, molda um ser a sua imagem e semelhança, que resolve chamar Adão, sopra-lhe as narinas e lhe dá vida, iniciando-se assim o povoamento deste nosso planeta, até então tão calmo e tranqüilo. O barro, mistura de terra e água, como elemento primordial de nosso primeiro ancestral, segundo a tradição judaico-cristã. O barro que gerou Adão, cuja costela gerou Eva, de cujo conúbio todos descendemos, pelo menos assim está escrito. O barro, mistura santa de terra e água, tocado pelo sopro divino e dando início à história de nossa civilização, culminando em tudo isso que está aí. E agora esse cheiro de terra molhada, de natureza em seu estado puro, elementar, a lhe remeter aos mais remotos momentos da odisséia humana, quase ao “fiat lux” de Deus.
Magistralmente salta do Gênesis mosaico para a Teoria da Evolução, de Charles Darwin, e ainda aí encontra o barro como elemento fundamental da cadeia evolutiva humana, descrevendo com garbo e detalhes os primeiros momentos da formação de nosso planeta (ou os segundos, sejamos mais cordatos). E encontra a Terra inundada de um caldo riquíssimo, tépido, onde todos os elementos minerais se agitam à revelia de qualquer ordem, chocando-se ao sabor dos ventos e das chuvas torrenciais, fervendo no calor escaldante das emanações vulcânicas abundantes, assolados pelas incessantes faíscas das tempestades elétricas, profusas e impiedosas. Até que, num dado momento, ao comando do sábio acaso, que é o nome que a Ciência dá ao que ainda não conseguiu elucidar, funde-se a primeira molécula de DNA, unindo-se a um protoplasma, por conveniência ou proteção, dando início à primeira célula viva de nosso planeta, capaz de duplicar-se, reproduzir-se.
Daí, recordando-se de sua professora de Biologia citando aquela lindíssima frase que jamais esquecera: “a ontologia recapitula a filogenia”, era uma questão de pouquíssimo tempo até que células começassem a se reproduzir freneticamente, num frenesi quase orgástico. E dessa reprodução desenfreada começam a surgir colônias de células, organizando-se de acordo com a especialização que seguem, formando-se, assim, organismos cada vez mais complexos. E segue a saga evolucionista, discorrendo com furor e até uma certa propriedade, sobre o caminho e os milhões de anos percorridos, até que o primeiro protozoário viesse a se tornar o ser inteligente que somos hoje. De novo o barro como elemento primordial, sem o qual nada disso teria ocorrido.
Com sua enfática explanação consegue, em alguns minutos, unir a Igreja e a Ciência em torno de um elemento único. E agora parte a convencer os seus interlocutores, dos quais a maioria não está entendendo patavina, de que aquele cheiro que de repente lhe invadiu as narinas é capaz de conduzir o homem, a um só tempo, e eis a grande mágica do fenômeno, os seus primórdios místico e científico.
Mil vivas ao cheiro de terra molhada! Alvíssaras, loas, eureca ao cheiro de terra molhada. Esse elo que nos une ao absolutamente absoluto e ao absolutamente relativo. Esse odor impalpável, que nos une a Deus e à Ciência, na sua angustiante simplicidade de união de dois elementos da natureza.
E quando a platéia está para irromper em aplausos, mais para fazê-lo parar de falar do que exprimindo adesão, Nhá Tereza, em sua sapiência de preta velha de quase 100 anos, que nunca foi mais longe que a igreja do patrimônio, umbigo colado ao fogão, adiantando o almoço, que nunca vi comer tanto igual a essa gente, solta um resmungo lacônico que é mais uma sentença que um diagnóstico:
“Isso pra mim é verme!”
rsrsr
ResponderExcluirO momento da descoberta é sempre único... mesmo de algo tão prosaico quanto o bom e velho cheiro de chuva...
E quantas descobertas simples e belas o mundo reserva a quem tem os olhos abertos...
ResponderExcluirObrigado pelo comentário e pela visita!!!
Estou pensando seriamente em começar a escrever, porque eu to adorando ler as coisas que vc escreve.Muitas vezes simples, outras complexas, mas tudo muito cheio de verdades e descobertas, muito legal mesmo Ricardo, parabéns.
ResponderExcluirBju grande no core
Zete
Pois eu dou a maior força, prima...
ResponderExcluirPrecisando de alguma dica, é só falar...
Obrigado pela visita e pelo comentário!!!
Bjos!!!
Fique com Deus!!!