terça-feira, 6 de outubro de 2009

PECADO


Eu já acho um pecado os sete pecados capitais não serem mais sete.


Ficou confuso? É natural. O assunto, desde que foi trazido à baila pela primeira vez, provoca, realmente, muita discussão. E não existe a menor possibilidade de haver muita discussão sem confusão.

Dia desses fiz uma listinha, rabiscada à mão numa folha de rascunho, com os sete pecados tradicionais. Não, não sou tradicionalista. Mas confesso que fiquei muito desapontado quando descobri, pela imprensa, que o Vaticano estava emendando o rol dos abomináveis atos (com muito mais eficiência e agilidade que um certo Congresso).

E meu desapontamento não tem nada a ver com a nova preocupação de ter que pautar minha vida, doravante, de acordo com as novas regras, embora seja interessante imaginar a cena no confessionário (digo imaginar, porque se trata de um dos poucos redutos invioláveis em que os olhos do Grande Irmão ainda não conseguiram pousar):

- Padre, eu fumei um baseado!

O padre se benze, esconjura e já está com a penitência pronta a ser proferida, quando se lembra de perguntar:

- E quando foi a última vez, meu filho?

- Há duas semanas, padre. – faz uma carinha de contrição de fazer inveja a imagem de santo.

- Pode ir em paz, meu filho. E que o Senhor o acompanhe.

- Eu estou perdoado?

- Não tem o que perdoar, filho. Há duas semanas o novo código ainda não havia sido publicado. Vá e não fumes mais.

Apenas acho SETE um número muito mais charmoso que dez, onze ou sabe-se lá quantos.

Voltando à minha listinha, já me foi um exaustivo trabalho de puxar pela memória relacionar os bons e velhos sete pecados, que são por quase todos conhecidos desde São Tomás de Aquino:

PREGUIÇA, INVEJA, GULA, SOBERBA, IRA, AVAREZA e LUXÚRIA.


Marquei a lápis e muito discretamente um X ao lado daqueles que eu acho que cometo - preferi deixar de lado os que o ZÔTO (lembra dele?! – nunca se esqueça dele) acha que eu cometo – e me propus a escrever uma breve resenha sobre cada um. Nada de “mea culpa”; apenas uma análise superficial da minha relação de amor e ódio com os temíveis pecados.

Mas na hora em que eu ia começar, me bateu uma preguiça de proporções bíblicas e eu preferi ir fuçar a geladeira, em busca de algum petisco.

E a quem interessar possa, caso possa interessar a alguém, incinerei a famigerada listinha, lançando um pouco mais de monóxido de carbono na atmosfera.

Eu sei que é pecado. Mas foi por uma boa causa.

segunda-feira, 5 de outubro de 2009

TEMPO PERDIDO 2


Ela está sentada em frente à televisão. Nem pisca os olhos. Novela das oito. É um modo de falar, pois todo mundo já deve ter percebido que não existe mais novela das oito. Mas ficou o nome. Ninguém quer falar “novela das nove”. Talvez seja a televisão colaborando inconscientemente (será?!) com a obsessão de dez entre dez pessoas de exercer um maior controle sobre o passar do tempo. Ou não. Devaneios à parte, qualquer que seja o horário em que comece ou termine, naquele lar a novela das oito é sagrada.
Ele folheia um livro com aparente displicência, sentado na cabeceira da mesa da sala de jantar.
Passa várias páginas ao mesmo tempo, percorre com os dedos, parece encontrar o que estava procurando, anota a lápis numa folha de rascunho pousada ao lado, torna a folhear, apertar os olhos, anotar.
Ela desliga a TV. Terminou a novela, vai começar o futebol. Dirige-se à cozinha, para terminar de guardar a louça do jantar.
- O que você está fazendo aí, Anísio?! Que livro é esse?! – ela nunca se satisfaz com uma pergunta de cada vez.
- Uma pesquisa. – ele responde sem levantar os olhos do livro.
- Pesquisando o quê? Que livro enorme é esse?
- Isso é um dicionário, Dores. Estou pesquisando nomes de flores.
- Isso por acaso dá dinheiro, Anísio?!
- Como assim?!
- Fica aí sentado, horas a fio, perdendo seu tempo procurando nome de flor. Não tem mais o que fazer, pelo amor de Deus?!
- Sei lá. Acho bonito e enriquece o vocabulário.
- Ah, sim! Posso até ver a cena: reunião na empresa e você discorrendo para o Doutor Marinho sobre os espécimes da flora brasileira. Tem até graça.
Ele balança a cabeça. Suspira. Sabe que é inútil discutir, quando ela começa com o sarcasmo. Fecha o dicionário, calça os chinelos e levanta-se, arrastando os pés em direção à TV.
- Onde você vai, agora? – ela pergunta.
- Vou ver o futebol, Maria das Dores.
- Agora sim!
Ela quase dá um sorriso, satisfeita, e entra na cozinha.

PERDA DE TEMPO


Ela revirava os olhos, contorcia as sobrancelhas, subia e descia a mirrada bunda na cadeira, fazia muxoxo e resmungava a cada 15 segundos:

- Tsc! Quanta perda de tempo!
A mãe fingia que não ouvia. Continuava em seus afazeres domésticos, como se alheia a todos aqueles protestos pretensamente velados.
E ela prosseguia naquela luta inglória, passando as páginas do livro com quase fúria, bufando feito bode embarcado.
Depois do décimo quarto “tsc” e mais alguns resmungos quase (infelizmente) inaudíveis, a mãe meio que se irrita e resolve perguntar, mais curiosa do que a censurar a filha adolescente:
- Deus do céu, menina! Do que é que você tanto reclama?!
- Eu não agüento isso, mãe! É muita perda de tempo! Um verdadeiro desperdício!
- Isso tudo só porque você está estudando pra ser alguém na vida?
- O que me irrita é esse desperdício de tempo. Tanta coisa mais importante pra fazer e eu aqui tendo que descobrir como um corpo se comporta em cima de um maldito plano inclinado!
A mãe não fazia idéia do que aquilo significava. Apenas procurava não esboçar concordância enquanto enxugava e guardava mais um copo. No tempo dela as coisas eram bem diferentes, embora se lembrasse de muito pouca coisa. A filha prossegue em sua adolescente irritação:
- Você tem idéia do que seja um plano inclinado, mãe?
Ela temia a pergunta. Fez que não ouviu, enquanto fingia procurar alguma coisa no armário sob a pia.
- Pois é! Tanta coisa mais interessante acontecendo pelo mundo afora e eu aqui enfurnada na frente desse livro, tendo que entender um troço que eu tenho certeza de que nunca vai me servir de nada.
Engoliu as páginas que faltavam da matéria. Deu um suspiro aliviado e fechou o livro com raiva.
- Até que enfim.
Largou os livros ali mesmo pela mesa e atirou-se correndo no sofá da sala para ler o último número de Caras.