segunda-feira, 5 de outubro de 2009

TEMPO PERDIDO 2


Ela está sentada em frente à televisão. Nem pisca os olhos. Novela das oito. É um modo de falar, pois todo mundo já deve ter percebido que não existe mais novela das oito. Mas ficou o nome. Ninguém quer falar “novela das nove”. Talvez seja a televisão colaborando inconscientemente (será?!) com a obsessão de dez entre dez pessoas de exercer um maior controle sobre o passar do tempo. Ou não. Devaneios à parte, qualquer que seja o horário em que comece ou termine, naquele lar a novela das oito é sagrada.
Ele folheia um livro com aparente displicência, sentado na cabeceira da mesa da sala de jantar.
Passa várias páginas ao mesmo tempo, percorre com os dedos, parece encontrar o que estava procurando, anota a lápis numa folha de rascunho pousada ao lado, torna a folhear, apertar os olhos, anotar.
Ela desliga a TV. Terminou a novela, vai começar o futebol. Dirige-se à cozinha, para terminar de guardar a louça do jantar.
- O que você está fazendo aí, Anísio?! Que livro é esse?! – ela nunca se satisfaz com uma pergunta de cada vez.
- Uma pesquisa. – ele responde sem levantar os olhos do livro.
- Pesquisando o quê? Que livro enorme é esse?
- Isso é um dicionário, Dores. Estou pesquisando nomes de flores.
- Isso por acaso dá dinheiro, Anísio?!
- Como assim?!
- Fica aí sentado, horas a fio, perdendo seu tempo procurando nome de flor. Não tem mais o que fazer, pelo amor de Deus?!
- Sei lá. Acho bonito e enriquece o vocabulário.
- Ah, sim! Posso até ver a cena: reunião na empresa e você discorrendo para o Doutor Marinho sobre os espécimes da flora brasileira. Tem até graça.
Ele balança a cabeça. Suspira. Sabe que é inútil discutir, quando ela começa com o sarcasmo. Fecha o dicionário, calça os chinelos e levanta-se, arrastando os pés em direção à TV.
- Onde você vai, agora? – ela pergunta.
- Vou ver o futebol, Maria das Dores.
- Agora sim!
Ela quase dá um sorriso, satisfeita, e entra na cozinha.

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