quarta-feira, 30 de dezembro de 2009

EM DEFESA DO PATRIMÔNIO NACIONAL




A reunião aconteceu a portas fechadas, cercada de sigilo, pompa e circunstância. O assunto era grave e urgente e necessitava da máxima atenção. Nada dos flashes e dos ouvidos das imprensas de todas as cores, para que os participantes pudessem deliberar à vontade, na estrita defesa dos interesses da classe.


Encabeçando a discussão e presidindo os trabalhos, ele, o Saci-Pererê, um líder natural, devido à sua popularidade e notoriedade, não conseguia permanecer sentado. Pulava de um lado para o outro, sentindo falta de seu inseparável cachimbo (Isso mesmo. A lei antitabagista já havia chegado ali, também) e tentando conter a algazarra daquele grupo, no mínimo, bizarro.


Estavam presentes a Mula-sem-cabeça, o Curupira, o Lobisomem (o brasileiro, não aquele dos filmes americanos), a Mãe-d'Água, o Boitatá e o Negrinho do Pastoreio. O Boto também fora convocado, mas não apareceu. Com certeza se enrabichou atrás de algum rabo de saia no caminho e esqueceu da vida.


A pauta daquela reunião extraordinária era o combate à absurda e inaceitável invasão de personagens alienígenas no folclore brasileiro (assim mesmo, cheio de ênfase e adjetivos. Entenda-se, aqui, alienígena não como seres vindos de outros planetas, que, ainda bem, a coisa ainda não chegou a esse ponto; mas estrangeiros, de um modo geral, com especial antipatia pelos vindos do hemisfério norte).


O Saci limpou a garganta, exasperado, e pediu silêncio aos presentes, para que pudessem dar início às discussões. Atrás de si, um imenso mural, de autoria desconhecida, mostrava o momento exato do nascimento de Macunaíma, que era reverenciado como um semideus entre eles.


- Senhoras e senhores, sem maiores delongas, vamos direto ao assunto: nossa classe vem sendo constantemente ameaçada pela invasão de seres alienígenas, completamente estranhos ao cenário folclórico nacional. Estamos seriamente ameaçados de extinção e não podemos simplesmente ficar de braços cruzados, esperando que isso aconteça.


A Mãe-d'Água, suando em bicas, pediu a palavra e perguntou, impaciente:


- Senhor Saci, gostaríamos que fosse mais específico, para que possamos agilizar essa conversa. A que invasores, especificamente, o senhor se refere?


- Ora, minha cara, eu me refiro a todos esses personagens que vêm tomando conta do imaginário popular, ocupando um espaço que outrora nos pertenceu. Falo aqui dos vampiros, dos duendes, elfos e afins, dos cabeça-de-abóbora, ETs das mais variadas origens e espécies, Papai Noel…


Neste momento, a Mula-sem-Cabeça soltou um relincho das profundezas de suas entranhas, batendo irritada os cascos dianteiros sobre a mesa de reuniões. Uma algazarra geral se instalou no recinto, contida a muito custo pelo senhor presidente.


- Está bem, está bem! Me desculpem! Vamos abrir uma exceção para o Papai Noel. – ele já previa que aquele seria um ponto sensível da reunião, que teria que ser trazido à tona outras vezes. O fato é que não tolerava a concorrência com o outro homem do gorro vermelho, aquele que todo mundo esperava, mas era uma questão pessoal, e não podia deixar que isso transparecesse, para não estragar seus planos. - Mas não podemos contemporizar, amigos. Afinal de contas, quantas de nossas crianças, hoje em dia, sabem quando se comemora o dia de Cosme e Damião? Pouquíssimas. Agora, Halloween todo mundo sabe quando é. As escolas não comemoram mais o dia nacional do folclore. E desde que o Lobato nos deixou (era o patrono deles, com direito a busto de bronze em lugar de destaque na sala e tudo mais) vemos cada vez mais nosso espaço minguar, sendo ocupado por bruxinhos ingleses ou vampiros americanos. Precisamos tomar uma atitude urgentemente.


O Lobisomem, visto com certa desconfiança por todos, por ter parentes influentes em Hollywood, tentou colocar panos quentes:


- Caros colegas, não vejo motivo pra tanto alarde. Afinal de contas, a situação é geral e bem mais abrangente. A invasão está ocorrendo em todos os planos. O que precisamos fazer, ao invés de combater, é nos adaptar. Basta olhar por aí: não existe mais lanchonete, é só fast food pra lá e pra cá; placa virou outdoor; tem personal pra tudo que se imaginar. Até a casa da Tia Lúcia, quem não se lembra dela?!, Virou Summer House. O problema, como podem ver, não é só nosso. A globalização é uma realidade e chegou pra ficar.


O Curupira, sempre parecendo alheio a tudo, pediu a palavra e sugeriu:


- Senhor presidente, eu sugiro que estabeleçamos um plano e que o acompanhemos passo a passo.


O saci, escondendo a irritação pelo trocadilho, devolveu, em tom cordial entre dentes:


- Naturalmente, nobre companheiro. Desde que tomemos as precauções necessárias para não andar para trás.


Nova algazarra geral. As gargalhadas do Boitatá incendiaram a assembléia e, quase, a própria mesa.


Nisso entra na sala, de supetão, um autêntico Leprechaun, com sua vasta cabeleira ruiva, sua barbicha desgrenhada e sua indumentária verde da cabeça aos pés, portando um enorme trevo de quatro folhas. Silêncio geral.


- Mister Pererê, eu lamento interrompê-lo, mas receio que tenha um assunto da maior urgência a tratar consigo. Poderia me conceder um instante da sua atenção? Prometo que serei breve.


Todos olharam prontamente para o Saci, que não sabia o que fazer.


- Meu senhor, estamos no meio de uma reunião importante, com ordens expressas de não sermos interrompidos. Não sei como o senhor chegou até aqui, mas tenho que lhe pedir que se retire.


- Eu insisto. – seu tom de voz era grave de dar medo - Não tomarei mais que dois minutos de seu tempo. Enquanto isso, as damas e cavalheiros aqui presentes podem aproveitar para saborear um pouco desse maravilhoso chá, que trago como uma cortesia – estalou os dedos e uma fumegante xícara da mais nobre porcelana apareceu em frente a cada um dos participantes.


O Saci pediu, então, que o inusitado visitante, o acompanhasse a uma sala reservada, onde pudessem conversar mais à vontade. Dois minutos mais tarde, retiram-se os dois da sala, cumprimentam-se discretamente, e o Leprechaun deixa a sala, despedindo-se dos demais presentes com um leve aceno de cabeça. As xícaras ficaram.


O Saci toma novamente a palavra, em meio ao falatório geral:


- Caros companheiros, eu lamento informar, mas um assunto familiar da máxima urgência me obriga a deixá-los neste momento. Nossa reunião terá que ser adiada por tempo indeterminado. Meus assessores entrarão em contato com vocês, marcando uma nova data para que demos andamento no que iniciamos hoje.


Os participantes, embora fizessem questão de demonstrar uma profunda insatisfação, suspiravam de alívio. Enfim poderiam deixar aquela sala e ir cuidar de suas vidas. Esperariam uma nova convocação, que nunca apareceu.


No fim daquele ano, a população assistiu, estarrecida, à aparição do Saci (sem cachimbo, em respeito ao politicamente correto) no mais novo filme do Harry Potter.


Com direito a fala e tudo.


Em inglês britânico.


E corretíssimo.

quinta-feira, 17 de dezembro de 2009

ÚLTIMAS PALAVRAS




O Homem é o único bicho que tem consciência da própria finitude.


Alguns críticos argumentam que esse seria, talvez (sempre o talvez) o mais grave defeito de fábrica da raça. Afinal de contas, trata-se da principal mola propulsora de todos os conflitos existenciais.


Outros, por sua vez, sustentam que o projeto foi idealizado e executado com perfeição, que os primeiros exemplares foram criados para viver eternamente, sem preocupações, mazelas ou doenças, habitando e povoando o jardim do Éden. Mas que, num determinado momento, e talvez (sempre talvez) cedo demais, uma falha humana (e, a rigor, falhar também seria um atributo exclusivo da raça humana, mas isso é assunto pra outra hora) haveria forçado a uma mudança nos planos.


De uma forma ou de outra, já temos em quem colocar a culpa, o que é, no mínimo, fonte de grande conforto.


Tinha um amigo que se chamava Nestor (e isso, por si só, já daria uma crônica), que, como a grande maioria de seus colegas humanos, passou a prestar atenção na consciência de sua própria finitude (em Português claro – preocupar-se com a morte) quando completou 50 anos de vida. É a idade clássica para esse tipo de reação, pois acredita-se que se tenha chegado à metade da vida, embora eu mesmo conheça bem poucas pessoas que tenham chegado ao dobro disso.


Além das preocupações de praxe, como a promessa de parar de fumar (que, acredita-se, por si só, já aumenta em 10% a expectativa de vida do indivíduo), comprar mais frutas, verduras e legumes, que invariavelmente estragavam na geladeira, mas enfeitavam bastante, matricular-se numa academia e tomar mais vinho (como os médicos divergiam entre um cálice e uma garrafa por dia, tomava os dois, só por precaução), meu amigo Nestor sempre se preocupou em demasia com a impressão que causava nas pessoas que estavam à sua volta. Como o físico não era lá essas coisas, cuidava com esmero do vocabulário, sempre com tiradas inteligentes e espirituosas, que a maioria dos circunstantes não entendia, mas procurava sorrir e concordar sempre.


Pois meu amigo Nestor fez questão de deixar claro, em todas as suas conversas com amigos, colegas de trabalho e interlocutores em geral, que gostaria que as suas últimas palavras, quando enfim expirasse, deveriam ser gravadas em sua sepultura. Explicava sempre, porque eram poucos os que compreendiam de imediato quando ele mencionava a palavra "epitáfio".


Como felizmente não é dado ao homem conhecer o momento exato de sua morte, salvo nos casos de suicídio, para não ser pego de surpresa, Nestor desenvolveu o hábito de soltar pérolas filosóficas em determinados horários do dia.


Variava sempre o repertório, ou, pelo menos, assim parecia, porque depois de alguns dias do que se esperava que fosse apenas uma nova mania passageira, mas que não passou, ninguém mais prestava muita atenção em suas elucubrações.


Alice, sua mulher, durante as primeiras semanas até fingia anotar seus "pensamentos". A empregada, por sua vez, apenas se benzia e dizia "ai, seu Nestor fala umas palavras que nem parecem coisa de Deus!". E se arrepiava inteira.


Seus horários fixos incluíam a hora de deitar e levantar, antes do almoço, a chegada no escritório, os inícios de reuniões e os happy hours, sem contar os momentos que ele julgava apropriados para atirar solenemente seus pseudo aforismos do tipo:


"O homem, ao acercar-se o ocaso de sua existência…"


"Anelemos por um novo lar num zimbório nimbado de estrelas."


"Estou pronto para o amplexo derradeiro ao pó de onde me criei."


"Que o orbe que nos abriga não se turbe ao olvido de meu ser."


E por aí seguia. Pitoresco, no começo. Chato, logo depois. E nos muitos anos que se seguiram, tornou-se insuportável a mania de filosofar do Nestor, até chegar a um ponto em que quase nada do que ele dizia fazia o menor sentido. E ele apenas sorria, com um ar de despretensiosa superioridade.


Foram milhares de frases, algumas até inteligíveis, e, na manhã em que o braço adormeceu, o ar começou a faltar e uma dor intensa apossou-se de seu velho corpo, com os sinais indubitáveis de um infarto fulminante, sua mulher entrou no quarto, assustada com os grunhidos e deparou-se com o marido nos estertores da morte. Com a cara roxa, o olhar vidrado e a boca escancarada, conseguiu ainda pronunciar três palavrinhas. E expirou.


Dona Alice, ao encomendar a lápide, acabou por escolher distraidamente uma de suas frases mais recorrentes (sim, todos notavam que ele repetia sistematicamente as frases que dizia).


Porque suas últimas palavras, de verdade, não dava pra gravar na sepultura.


Nem pra repetir aqui…

sexta-feira, 11 de dezembro de 2009

O CORPO FALA – DIÁLOGO DE UM PÊNIS COM SEU HOMEM



Manhã de quinta-feira, agenda lotada, ele está em frente ao espelho, enrolado na toalha, terminando de fazer a barba, quando escuta uma voz vinda lá de baixo.


Ele olhou para os lados, apertou os olhos, mirou-se no espelho e só viu seu próprio rosto, semi coberto de espuma de barbear. Não havia mais ninguém no banheiro e estava sozinho no apartamento. Com certeza tivera apenas uma alucinação auditiva, produto do sono e da vontade de ficar mais um pouquinho na cama.


- Não finja que não é com você! Você me ouviu! – e agora a voz surgia um pouco mais alta, grave, profunda e séria, denotando algum enfado e um princípio de irritação.


Ele largou o barbeador sobre a pia, limpou o rosto com a toalha e começou a procurar pelo banheiro.


- Q-quem é você?! E onde você está?! – só podia ser uma brincadeira do Ferreira, que estivera por ali clandestinamente com uma garota naquela semana. Mas não achou nenhum aparato eletrônico de onde pudesse estar saindo aquela voz. Apenas a boa e velha bagunça de sempre no banheiro.


- Estou aqui, onde sempre estive. E o seu grande mal sempre foi e continua sendo esse: não me dar ouvidos.


Olhou para baixo, boquiaberto. A voz provinha de algum lugar atrás da toalha que lhe cobria parcialmente o corpo. Vagarosamente abriu-a. Não havia nada de diferente por ali.


- Achou. Gênio! Assim fica melhor pra termos uma conversinha.


- Eu não acredito!... você é…


- Sim, eu sou seu pênis, sabichão. E me desculpe se eu não apareço pra você com olhinhos e uma boquinha sorridente. Acho que você já passou da idade de quem precisa dessas coisas. Além do mais, o assunto é sério.


Num átimo, milhões de coisas passaram pela sua cabeça, sendo que as palavras GREVE e, pior, APOSENTADORIA pareciam piscar como aterradores letreiros de neon. Arregalou os olhos e mal conseguiu pronunciar um "Hum?", ao que o outro prosseguiu:


- Você precisa aprender a me escutar, Alberto. Prestar mais atenção às mensagens que eu lhe transmito, nos momentos cruciais da sua vida.


- Mas eu nunca imaginei que você falasse!... Como poderia lhe escutar?


- Estou falando de comunicação não verbal, meu caro. Expressão corporal, reações, essas coisas. Eu tenho certeza de que poderia ter lhe poupado de uma série de dissabores, caso você houvesse decifrado minhas últimas mensagens. Mas não. Eu cheguei mesmo a tomar algumas atitudes drásticas, recusando-me a colaborar com aquilo que eu sabia que seria a maior furada (sem trocadilho). E você pateticamente acabou recorrendo ao maldito lugar comum do "isso nunca me aconteceu antes". Era eu que estava te avisando pra saltar fora enquanto ainda dava tempo. Não havia nada de errado com você. Muito menos comigo. Mas infelizmente você se recusou a me ouvir, a aceitar o "conselho" que eu estava lhe transmitindo. E deu no que deu.


- Você está falando da…


- Nada de nomes, por favor. Você sabe muito bem de quem eu estou falando. Só lamento ter demorado tanto a concordar comigo. Mas agora é tarde.


- Agora eu entendo. – e suspirou aliviado. – Então era isso. Mas como é que você podia ter tanta certeza, assim?


- Eu prefiro não entrar em detalhes, para não confundi-lo. Mas digamos que eu tenha uma visão mais aprofundada do assunto. Meu olhar crítico e desapaixonado me permite captar certas nuances que lhe costumam passar despercebidas. Isso sem contar a quantidade de baboseiras que eu ouvi durante todo aquele tempo. Seu grande problema foi usar a cabeça de cima para insistir naquilo. Mas tudo bem; nós nunca conseguimos trabalhar em grande sintonia, mesmo.


- Caramba! Eu não sei nem o que dizer. Foi mal te meter nessa enrascada…


- Não se desculpe. Apenas aprenda com a experiência.


- OK. Prometo que vou prestar mais atenção em você. E como eu devo lhe chamar?


- Não deve. Entenda que, se achar que precisa me chamar, é um sinal evidente de que eu não devo entrar em ação. Quando a parada for boa, estarei pronto antes mesmo que possa me chamar. E nem pense em me atribuir qualquer tipo de apelido carinhoso, senão eu te deixo na mão.


- Entendido. Quer dizer então que…


- Que o meu silêncio é a mais eloqüente das respostas. E tenho dito. Agora vá terminar de se arrumar, pra não se atrasar pro trabalho, que hoje você tem uma reunião importante.


- Foi bom você tocar nesse assunto. Tem uma assistente da diretoria que anda me dando o maior mole. É gata, mas parece ser meio complicada. O que você acha?!


- Faça a sua parte, que eu faço a minha. Afinal de contas, não custa tentar, né?!

segunda-feira, 7 de dezembro de 2009

O GARANHÃO DAS ESTRELAS





Naquele dia ele acordou muito mais sobressaltado que de praxe. E o que é pior, vários minutos antes de tocar o despertador. Ficou remexendo-se na cama, resmungando alguma coisa ininteligível, que a mulher preferiu fingir que não escutava, pra ver se ele conciliava o sono novamente, o que não aconteceu.



Saiu de casa sem tomar café, bem mais cedo que o habitual. Não revirou o jornal, como sempre fazia.



Até o porteiro do edifício que abrigava a imobiliária onde trabalhava estranhou que ele, sempre atrasado, estivesse chegando tão cedo:



- Bom dia, "Seu" Noronha. Caiu da cama?! E arreganhou os dentes num sorriso que, àquela hora da manhã, ofendia mais que xingamento à mãe. Ele respondeu com um grunhido. Não podia perder tempo; precisava ser o primeiro a chegar ao escritório.



Quando a recepcionista entrou, encontrou-o com as duas mãos na cabeça e o olhar confuso, tentando descobrir como ligar a máquina de café. Cumprimentou-o polidamente, nunca haviam trocado mais que duas palavras, e apertou o botão vermelho que se encontrava bem à sua frente, com o que a máquina pareceu tomar vida e resfolegar aquele inconfundível aroma de café que aos poucos foi inundando o amplo escritório.



Ele respirou fundo, como tentando absorver a cafeína daquele cheiro, para organizar melhor as idéias. E só então se lembrou de perguntar:



- Dona Soraia, a senhora por acaso sabe a que horas chega o Sandoval?



- Ele costuma chegar religiosamente às oito em ponto. Faltam quatro minutos.



Parecia uma eternidade. Mas não havia alternativa, senão esperar. Serviu-se de uma xícara de café e ficou andando de um lado para o outro, esperando que o Sandoval aparecesse com seu indefectível jornal debaixo do braço e sua temerária gravata estampada.



Às oito em ponto tocou a campainha anunciando a chegada do elevador. Pela porta de vidro ele pôde ver o Sandoval, sempre com as mãos cheias, caminhando apressadamente em direção à sua sala, não sem antes desejar um sonoro "bom dia", com sua voz de barítono, a Dona Soraia, que já ocupava seu posto na recepção.



- Sandoval, preciso falar com você! É urgente!



- Noronha?! O que houve?! Caiu da cama?!



Ele nem ouviu o gracejo. Foi empurrando o Sandoval em direção à sua sala, enquanto se certificava de que não estava chamando atenção demais. Havia pouca gente pelos corredores àquela hora.



Entraram, fechou a porta, passou a chave, respirou fundo, tentando recobrar o fôlego. Seus olhos pareciam querer saltar das órbitas.



- Meu Deus! O que houve?! Aconteceu alguma coisa? Está tudo bem com a Gracinha? – Eram cunhados, o que sempre servia de explicação para a excessiva tolerância do Sandoval (Doutor Miranda, como o chamavam os demais funcionários) para com os atrasos e trapalhadas do Noronha (que todos chamavam de Noronha, mesmo. Pelos menos na sua presença.)



- Está tudo bem com a Gracinha, com o Caio e com a Gisela, também. E com o Lex (era o cachorro, numa bem humorada homenagem ao temível vilão de Gotham City, pela total ausência de pêlos, embora não fizesse mal a uma mosca), antes que me pergunte. A coisa é séria. Esta noite eu tive uma revelação e preciso contá-la pra você. Primeiríssima mão.



- Uma o quê?! – Sandoval começava a se assustar. Embora o Noronha fosse sempre um pouco enfático demais em tudo, aqueles olhos de espanto pareciam exagerados. Até mesmo pra ele.



- Uma premonição!...



- Ora, tenha a santa paciência! Você então me chega aqui todo esbaforido pra me contar um pesadelo que teve?! Sugiro que procure o Dr. Souza, meu analista. Além de ele ser muito mais indicado pra esse tipo de conversa, estou com a agenda lotada agora pela manhã. Sinto muito.



- Me escuta, Sandoval. Não foi um sonho, posso te garantir. Eu estava deitado, é verdade, mas acordei com meu celular tocando. Um toque diferente, uma música que eu nunca havia ouvido antes, tipo aquelas que anunciam uma desgraça em filme de suspense.



- Hum… - Sandoval sabia que ele não ia lhe dar sossego enquanto não dissesse o que tinha pra dizer. Passaria o dia inteiro inventando pretextos para entrar em sua sala, interfornar, esbarrar pelo corredor. Melhor acabar com aquilo logo.



- Atendi depressa, pra não acordar a Gracinha. Uma voz feminina meio rouca, muito sexy, foi logo falando: "Salve, nobre Gilson, futuro patriarca de Síron!" (Ele detestava o primeiro nome. Às vezes chegava mesmo a esquecer que tivesse um. Mas naquela voz, no meio da madrugada, lhe soou como música.) Eu soltei um palavrão, disse que aquilo não era hora de estar passando trote em ninguém e já ia desligando o telefone, quando uma outra voz feminina, ainda mais sexy que a primeira, me impediu: "Temos uma mensagem da maior importância para você."



Naquele instante, meu telefone começou a projetar uma imagem, como se fosse uma televisão em 3D, e eu pude então ver as duas mulheres que conversavam comigo. Imagina a Sophia Loren e a Marilyn ligando pra você no meio da madrugada. Imaginou?! Passou longe: elas dão de dez a zero. Foi aí que eu tive a certeza de que não era um trote.



Noronha contou detalhadamente a conversa que tivera com as duas estranhas interlocutoras, que estavam a bordo de uma espaçonave intergaláctica cujo nome ele não conseguira entender, de como elas o conduziram por um tour pela nave, onde só se viam mulheres dos mais variados tipos, todas aparentando idade entre os vinte e trinta anos e dignas de fazer inveja a um desfile da Victoria's Secret.



Ao fim do tour, a que parecia ser a comandante da nave lhe confidenciou o motivo da inusitada comunicação:



- Nosso planeta sofreu uma terrível catástrofe, com a disseminação de um vírus letal que dizimou todos os espécimes masculinos de nossa raça. Tentamos por vários anos desenvolver métodos assexuados de reprodução, com os quais pudéssemos assegurar a continuidade de nossa espécie, mas sem sucesso. Após uma extensa busca por vários quadrantes do universo, nossas cientistas chegaram à conclusão que apenas os homens da Terra portariam características compatíveis com as nossas, para que obtivéssemos êxito em nossa empreitada reprodutiva. E, analisando os códigos genéticos dos homens de sua espécie, constatamos que VOCÊ seria a pessoa mais indicada para liderar essa importante jornada de repovoamento de nosso planeta. É por isso que viemos, em nome de todas as sironianas, rogar que se junte a nós, em nome da salvação da nossa espécie. E como somos milhões, ávidas pela oportunidade de nos reproduzirmos, sugerimos que reúna, entre aqueles que achar mais aptos à tarefa, doze espécimes masculinos do seu planeta, para que façam parte de sua equipe.



Noronha, com os olhos repletos de lágrimas e a gola do pijama empapada em baba, não conseguia articular palavra. Apenas assentia com a cabeça repetidamente, como hipnotizado pela inusitada proposta. Ou pelos magníficos seios da Marilyn que lhe falava.



- Aceitaremos seu silêncio como consentimento. Existem, porém, alguns riscos que essa operação pode acarretar, e é nosso dever informar-lhe. Nossa espaçonave emite uma grande quantidade de radiação, e não estamos bem certas do que isso pode acarretar ao seu planeta. Na pior das hipóteses, uma reação em cadeia com o nitrogênio presente em sua atmosfera pode desencadear um cataclismo de proporções jamais vistas, capaz de aniquilar completamente a vida na Terra. Precisamos saber se, mesmo ciente de tais riscos, você estaria disposto a colaborar conosco.



Ele permanecia com os olhos vidrados, balançando a cabeça afirmativamente.



A comandante Marilyn deu um gritinho de contentamento, seguido de um largo sorriso e lhe informou que ele, juntamente com os doze escolhidos, deveriam estar reunidos dentro de quatro dias, naquele mesmo horário, a uma altitude de 24 metros do nível do mar, formando um círculo, de mãos dadas. Sem bagagem. Elas cuidariam de tudo.



A vontade do Sandoval, ao ouvir aquele monte de sandices, era atirar o Noronha pela janela do sétimo andar, onde estavam. Mas ele sabia que algo sério acontecera. O Noronha, por mais que ele soubesse não ser muito certo da cabeça, não era de fazer brincadeiras daquele tipo ou qualquer outro. Era meio doido, mas sério. Por via das dúvidas, deu-lhe um bilhete e mandou que o entregasse ao Dr. Souza ainda naquela manhã.



Horas depois o Noronha mete a cara pela porta, visivelmente mais calmo e composto.



- E então?! Como foi a conversa com o Dr. Souza?



- Ele topou! – e dá um sorriso triunfal. – Agora só faltam onze.



Em poucos minutos estava ao telefone com o psiquiatra. Conseguiu fazer com que a secretária interrompesse a sessão com um dependente químico em tratamento, pois era um dos pacientes mais antigos (e ricos) e estava em uma emergência. Doutor Souza foi paciente e didático ao telefone, ao explicar a sua decisão:



- Meu caro Miranda, passei seu cunhado por todos os crivos conhecidos na moderna Psiquiatria e posso lhe assegurar que mentindo ele não estava. O que ele me narrou foi uma experiência verdadeira. É difícil precisar se a mesma partiu de seu consciente ou inconsciente, mas achei sensato conceder-lhe o benefício da dúvida. E como ele foi extremamente amável ao me convidar para fazer parte da sua importante missão, achei que seria de muito mau gosto recusar.



- Eu não acredito que você tenha embarcado com ele nesse delírio. Francamente!...



- Ora, Miranda! Reflita comigo: caso a teoria dele esteja correta, em quatro dias a vida em nosso planeta estará aniquilada. Aceitar o convite seria a única maneira de sobreviver a essa iminente catástrofe.



- Mas, e se isso for apenas um delírio da mente daquele louco?



- Nesse caso, podemos contar com um "depois" pra resolver isso. Pense bem. Você foi a primeira pessoa que ele procurou para fazer parte da missão. E ao rechaçá-lo, ele entendeu como uma recusa. Eu sugiro que o procure e desfaça esse mal entendido. A propósito, foi bom você ligar: estou cancelando a sua consulta desta semana. Vamos nos ver em quatro dias, mesmo…



E desligou.



Parecia loucura. Mas fazia sentido. Chamou Noronha à sua sala e tentou agir com naturalidade:



- E então, meu caro?! Quantos já somos até o momento?



- Quer dizer que você resolveu aceitar o meu convite?



- Sei não, cunhado. Ainda estou achando isso tudo muito esquisito. Mas conversei com o Dr. Souza e ele foi bastante convincente. Mas preciso te fazer uma pergunta da maior importância, antes de tomar essa decisão.



- Manda!



- Nesse seu tour pela nave você viu alguma Pamela Anderson?



- Deixa ver… sim, me lembro de ter visto pelo menos uma. Na enfermaria.



- Estava doente?



- Não! Estava aferindo a pressão da Angelina.



- Uuuuuiii!!! Me deu até uma pontada no coração. Meu caro, Síron precisa de nós. Estou contigo nessa missão.



Os dias que se seguiram foram permeados de cochichos, piscadelas e reuniões em segredo. O time estava formado e altamente motivado. O sigilo era absoluto, para que não se espalhasse um pânico desnecessário entre as esposas e os familiares. Afinal de contas, havia a chance de o nosso nitrogênio resistir à radiação da nave.



No dia e hora aprazados, os doze encontraram-se no terraço do edifício Lopes Miranda, sede da imobiliária. Resolveram que o porteiro deveria estar entre eles, para, no caso de o planeta sobreviver à aproximação da nave, não correrem o risco de deixar testemunhas que pudessem levar a pistas plausíveis. Todos sabiam do que as mulheres eram capazes.



Cumprimentaram-se discretamente, com um discreto sorriso no rosto e aquele brilho nos olhos, como crianças em torno da árvore de Natal.



Despiram-se em silêncio, amontoando as roupas ao pé da caixa d'água, e foram se reunindo no centro do terraço, formando um grande círculo, de mãos dadas, no meio do qual estava o celular do Noronha.



Ele tinha os olhos úmidos, novamente. Estava convencido de que o momento era o mais importante de sua vida. Mas não conseguia pensar em nada que pudesse improvisar para um breve discurso, então começou a repetir, como se entoasse um mantra: "Síron, Síron", no que foi imediatamente acompanhado pelos colegas.



Os minutos que se passaram pareceram uma eternidade. A cantilena foi aumentando gradualmente, até que todos suspenderam a respiração, quando perceberam que um ruído ensurdecedor, seguido de uma ofuscante luz e uma ventania que quase os desequilibrava foi se aproximando do terraço. Era o êxtase. Noronha sentia como se levitasse. Não cabia em si de contentamento. Desde criança sempre tivera a certeza plena de que seus talentos suplantariam os limites deste nosso pequeno planeta.



Foram instantes de júbilo extremo, interrompido apenas quando a voz chegou aos seus ouvidos:



- Aqui é a polícia. Vocês estão cercados. Fiquem onde estão.



Quase podiam tocar o helicóptero, que só não aterrissava porque o terraço era pequeno demais. Nesse instante a porta do terraço se abria e dezenas de policiais, liderados por Dona Gracinha e Mirthes Miranda, cercavam o perímetro.



Ninguém tentou fugir. Os integrantes do círculo apenas baixaram a cabeças, derrotados, e soltaram-se as mãos, para que pudessem cobrir as desguarnecidas partes baixas.



Por sorte conseguiram ser ouvidos pelo comandante sem a presença das mulheres. Pensariam depois no que diriam a elas. Mas era muito mais confortável explicar a um homem o que estavam fazendo ali, àquela hora, e naquelas condições.



O tenente quase chorou, ao ver a expressão de desolamento naqueles homens de meia idade. Mas manteve-se firme e repreendeu a cada um verbalmente de forma dura. Decidiu que não eram merecedores de inquérito, processo, nada dessas formalidades penais. A justiça andava ocupada demais com casos muito mais graves. E cada um já recebera um castigo muito mais grave do que merecia. Isso sem contar o que lhes esperava em casa.



O sol nasceu mais uma vez, para seis bilhões de pessoas em nosso pequenino planeta.



Às oito em ponto, Sandoval Miranda descia do elevador, rumo à sua sala, cumprimentando Dona Soraia com um sonoro "bom dia" de barítono. O porteiro estava impecável, disfarçando o sono, recebendo os funcionários e visitantes. Dr. Souza atendia seus pacientes em seu consultório. E todos os demais tocavam em silêncio suas vidas, decididos a jamais tocarem no assunto novamente.



Com exceção do Noronha, que arrumava as malas para assumir a gerência da filial de Botucatu.

quarta-feira, 2 de dezembro de 2009

PIMENTA NO OUVIDO DOS OUTROS



- Sabe uma coisa que me irrita?


Ele não estava muito interessado em saber. O segundo caderno do jornal de 3 dias atrás, que ele finalmente conseguira se sentar para ler, lhe parecia muito mais proveitoso do que o assunto que ela acabava de puxar. Mas sabia que não haverá como escapar do assunto, então emitiu um quase inaudível "hum?" para que ela prosseguisse.


- Essa gente que fica falando mal dos outros pelas costas. Acho um absurdo! Na frente é só sorrisos, gentilezas, maior falsidade. Aí é só a pessoa virar as costas que começa a criticar.


- É verdade…


- Hoje cedo eu estava saindo da academia com a Waldete e a Irene. Paramos pra tomar um suco na padaria e a Irene teve que sair, dizendo que estava atrasada pra uma consulta. Foi ela colocar o pé fora da padaria e a Waldete começar a meter o pau, dizendo que teria vergonha de sair com aquela roupa de ginástica na rua, se tivesse o tanto de celulite que a Irene tem. Que também, com aquele marido galinha que ela tem, só mesmo se exibindo por aí, pra ver se arruma um garotão. Que o marido, além de galinha, anda envolvido com uma série de denúncias na Assembleia Legislativa. E não parou de criticar a coitada da Irene enquanto eu não a deixei na porta do prédio.


- É um absurdo, isso…


- Imagina só! Justo a Waldete, que está tentando perder seis quilos (isso é o que ela diz, porque, pra mim, teria que ser no mínimo o dobro) desde março. Vive por aí, torrando a fortuna de pensão que recebe do ex-marido, cada dia com um garotão diferente. E o que é pior: despachou a mãe prum asilo, que ela enche a boca pra chamar de clínica, só pra poder receber homem em casa. Francamente! Isso me irrita!


Ele tirou os olhos do jornal. Olhou-a por cima dos óculos.


- E você, por acaso, está fazendo o quê, agora, Dulce?


- Eu?! Apenas comentando.

LEITURA IMPRÓPRIA



… E viveram felizes para sempre!


Fechou o livro quase sem ruído, para não acordar a menina sob o edredom. Ergueu-se lentamente e quando estava já com o pé pronto para o ante pé, ouviu a voz muito acordada que quase lhe assustou:


- Mamãe!


Olhou para a filha com aquela cara de desespero de quem pergunta "essa menina não vai dormir?!". Seus olhinhos a fitavam acelerados, como os de quem está no meio de uma vertiginosa tempestade cerebral. Respirou fundo.


- O que é, meu amor? Achei que você estivesse dormindo…


- Existe príncipe?


-Sim, meu amor! É claro que existe. Quando o rei e a rainha têm um filho, esse filho é um príncipe. – não dava pra explicar detalhadamente pra filha de seis anos como funcionava a monarquia, reis, rainhas, príncipes, princesas e tudo isso. Mesmo porque não entendia muito bem dessas coisas.


- E sapo, existe?!


- Sim, minha filha. Sapo existe. – Dez e meia da noite, o programa favorito de TV já está pela metade. A paciência começa a minguar, mas é preciso manter a calma.


- E o papai é um príncipe ou é um sapo?


A mãe revira os olhos, senta-se na beira da cama, conta até trinta, pensando cuidadosamente no que vai dizer. Suspira. De nada adiantara fingir que não estava entendendo aonde aquela conversa ia dar.


- O papai é uma pessoa comum, filha. Não é um personagem de contos de fadas. – e enumerou algumas das características básicas que comporiam uma "pessoa comum", que fossem acessíveis a uma menina de seis anos de idade muito espertinha, embora por dentro estivesse morrendo de vontade de dizer que o papai era muito pior que um sapo; que mais parecia um dragão, principalmente quando voltava pra casa depois de uma dose a mais de vodca, o que vinha acontecendo com demasiada freqüência antes da separação.


A filha ia fazendo que sim com a cabeça, como se estivesse entendendo tudo. Mas a mãe tinha certeza de que ela estava mesmo era preparando a próxima pergunta.


- E você, mamãe?


- Eu o quê, filha?!


- Você é uma princesa?


A mãe quase engasga, ao tentar conter uma gargalhada que soaria muito mais como a de uma bruxa, mas se contém e responde de maneira didática, enquanto afaga as madeixas da menina que agora está sentada na cama, que também ela, a mamãe, é uma pessoa comum, enumerando algumas características (mais bem escolhidas dessa vez) das pessoas comuns.


- Então eu não estou entendendo nada!


- O que você não está entendendo, minha filha?


- Se você é uma pessoa comum e o papai também, por que é que vocês não foram felizes para sempre?


Foi difícil segurar a vontade de dar um grito e sair correndo do quarto. Apenas uma lágrima furtiva minou do olho esquerdo, que ela disfarçou com maestria. Não dava pra explicar pra uma menina de seis anos o que falhara em sua vida conjugal. Mesmo porque não entendia muito bem dessas coisas.


Apenas sorriu amarelo, levantou-lhe a franja e beijou-lhe a testa e disse:


- Hora de dormir, princesinha! Boa noite!


E saiu do quarto.


Na noite seguinte, por via das dúvidas, colocaria um DVD do Pokémon pra menina dormir.

terça-feira, 1 de dezembro de 2009

ARROUBOS MUSICAIS - BELCHIOR - ALUCINAÇÃO



É claro que este é do tempo do vinil, garimpado com muito suor nos nichos empoeirados da Natu Discos.


Eu tinha uma coleção de DISCOS (era assim que a gente chamava) da qual me orgulhava muito e cuidava com muito zelo. E é claro que só tinha coisa boa, mas isso é muito relativo e não vamos entrar no mérito dessa questão.


Lá pros idos de antes de 1990, um cover do Belchior (naquela época ainda não se chamava cover, mas eu não me lembro o nome que tinha) veio a Cachoeiro fazer um show num barzinho cujo nome também não me recordo. O local era bem grande e, fora a nossa turma, havia mais umas duas mesas ocupadas, no máximo.


O cantor era bom. Tinha até bigode…


Quando enfim resolve dar aquela estratégica paradinha pro xixi, não perdi tempo: pulei no palco e empunhei o violão do artista da noite para dar uma canja, como quem agarra a espada conquistada a um inimigo feroz. Sentei-me no banquinho, falei alguma bobagem no microfone e arrisquei um sol maior…


Nada…


Dó maior.


Nada…


Sorriso amarelo na cara, olho pra platéia e vejo o cantor se dobrando de rir.


Só então me dei conta de que o infeliz era canhoto e que as cordas do violão estavam todas invertidas.


Fazer o quê, né?!


"A minha alucinação é suportar o dia-a-dia / E meu delírio é a experiência com coisas reais."

ARROUBOS MUSICAIS - FATOS

Salve, blogosfera!

Há algum tempo vimos adicionando algumas pérolas de nosso acervo musical, como forma de compartilhar com os amigos e visitantes algo que é tão belo e sublime.

A coleção vem aumentando aos pouquinhos.

É claro que cada música tem uma história. E é claro que com história tudo fica muito mais gostoso.

Por isso, a partir de hoje contaremos um pouquinho da história que levou cada uma dessas pérolas a fazer parte de nossa coleção.

Seja bem vindo!

Sinta-se em casa!

E divirta-se!

SUA CASA É SEU REINO

Um abonadíssimo cheque árabe, preocupado com a crise habitacional em seu principado, lançou um desafio mundial endereçado aos empreendedores da construção civil, em busca de uma solução econômica e humanamente viável para a situação.

Desejava custear moradias que fossem seguras, decentes e confortáveis para seu povo, que vivia em situação relativamente precária no deserto, abrigando-se em tendas de pele de camelo e suportando as tremendas variações térmicas do local.

Choveram propostas de todos os cantos do mundo, que foram analisadas por uma comissão de renomados profissionais e aos poucos a seleção foi se estreitando a algumas poucas idéias.

Findo o processo, o cheque (sheik, se preferirem) decidiria pessoalmente entre os projetos classificados.

Um, em particular, lhe atraiu a simpatia.

Tratava-se de um projeto ricamente apresentado por uma empresa brasileira, que se desmanchava em elogios à utilização de madeira de reflorestamento para a construção das unidades habitacionais pretendidas, listando as inúmeras vantagens nos quesitos segurança, conforto, bem estar, sustentabilidade e custo.

Era formidável.

Logo um sem número de assessores cuidavam dos detalhes e papelada necessários para que o cheque pudesse visitar a empresa agraciada com o prêmio e fechar o negócio pessoalmente. Fazia questão de apertar a mão daquele que considerava uma sumidade.

Chegando ao Brasil, tapetes vermelhos, limusines, restaurantes suntuosos, iates e noitadas foram a tônica da agenda organizada pela empresa vencedora. Mas o fechamento do negócio, propriamente dito, era sistematicamente protelado pelo cheque.

No último dia da visita, fizeram uma visita de helicóptero à pequena floresta particular de onde a empresa retiraria a matéria prima para a construção das casas, numa fazenda próxima à cidade. O "passeio" culminou com um rico almoço oferecido pelo empresário brasileiro em sua casa a toda a comitiva árabe. Presentes, naturalmente, políticos, colunáveis, socialites e uma série de outros comensais que não tinham nada a ver com o negócio.

Ao fim do banquete, o empresário pede a palavra para agradecer a visita dos ilustres convidados e aproveita para enaltecer mais uma vez as qualidades do seu projeto, destacando mais uma vez as qualidades da madeira brasileira, principalmente da sua.

O cheque, ao fim do discurso, levanta-se para saudar os anfitriões, agradecer pela calorosa recepção e pela magnífica oportunidade de conhecer um país tão rico e suntuoso, com uma gente tão hospitaleira e feliz. E aproveita para anunciar que decidira modificar os planos, dando o prêmio de melhor projeto a outra empresa.

Um falatório geral instalou-se na imensa sala de jantar.

O empresário saiu de fininho e deu um jeito de fazer com que seus assessores trouxessem o cheque a uma sala reservada, para uma reunião de emergência. Aquilo não podia estar acontecendo.

Visivelmente transtornado pelo anúncio do visitante, faz-lhe todas as perguntas que lhe vieram à cabeça naquele instante.

O cheque responde com grande educação que não vira nada de errado, que lhe causaram grande admiração a empresa, a floresta, os canteiros de obras, a fazenda. Tudo muito organizado e bem cuidado.

- Eu não consigo entender! – repetia o empresário. – Se está tudo certo com a empresa, com a fazenda, com as obras, com tudo, onde está o problema? Será então alguma coisa com a minha casa?!

- Não há nada de errado com sua casa. Ela é magnífica.

- Então?!...

- Mas é de tijolos…

quinta-feira, 26 de novembro de 2009

EVA E A SERPENTE



Anos depois da expulsão, quando já menstruava regularmente (e se preocupava quando não), tinha dores para parir e suava as folhinhas de parreira pra conseguir o próprio sustento, que o que o Adão andava fazendo mal dava pra cesta básica, nossa querida Eva foi surpreendida, enquanto estendia fraldas no varal, por uma discretíssima e sibilante voz feminina, vinda não se sabe de onde (nem se assustou, naquele tempo era muito comum ouvirem-se vozes vindas não se sabe de onde, embora na maioria das vezes fosses tonitruantes e masculinas):


- Ora, ora, se não é a minha queridíssima amiga Eva.


Eva olhou para os lados, não viu ninguém. Então abaixou-se para apanhar um prendedor de roupa que caíra e deu de cara com a serpente, aquela, fitando-a com um olhar hipnoticamente sedutor e um largo sorriso cínico na mirrada cara.


- O que você quer? Não vê que estou ocupada? – havia uma certa mágoa em sua voz. É claro que a interlocutora fingiu não perceber.


- Que bom que percebo que não está mais magoada comigo. Pois lhe trago uma proposta que mudará para sempre a sua vida e a dos seus.


Eva revirou os olhos e bufou. Da última vez que ouvira essa conversa (e caíra nela), deu no que deu. Passou os olhos rapidamente pelo monte de estrias na barriga flácida, culote, celulite, olhos bem nos olhos da serpente, sem muito disfarçar sua ira, e respondeu entre dentes:


- Eu agradeço a sua consideração, querida amiga, mas no momento não estou interessada.


- Mas você ainda nem ouviu o que tenho a lhe propor. – e, nesse momento, começou a enrolar-se lentamente na perna direita da Eva, levantando a cabeça alto o bastante para melhor fitá-la nos olhos e baixo o suficiente para que conservasse uma idéia de humildade perante a sua interlocutora. – Se me permitir, em alguns minutos eu lhe explico e então você poderá decidir com conhecimento de causa. Afinal de contas, é uma proposta que vem do Chefe…


- D'Ele? – pigarreou e olhou temerosa para o alto. Imaginou que Ele pudesse estar testemunhando essa conversa, envergonhou-se de estar usando folhas de parreira não muito adequadas para a ocasião, mas agora era tarde, não dava pra entrar em casa e se produzir. – E por que Ele escolheria você pra vir me fazer uma proposta?!


A serpente alargou ainda mais seu sorrisinho cínico. A isca havia sido mordida.


- Digamos que seja pelo meu poder de persuasão.


- Hum. Conheço bem. Mas como eu posso ter certeza de que você fala em nome dEle?


- Eu juro por Ele! – e fez carinha de santa. Quem conhece serpente, bem deve saber que jura desse bicho não é coisa em que se acredite. Mas supomos que a nossa amiga fosse um tanto quanto simplória, dada a acreditar em toda sorte de promessas, por mais que se desse mal (ainda existe gente assim). Pois não é que acreditou?


- Então vamos à sua proposta. Quer dizer, dEle. – e nisso a serpente ia se enrolando cada vez mais alto em suas pernas.


Começou então a discorrer, didática e pausadamente, como quem explica um assunto de gente grande a uma criança de sete anos, sobre o plano de salvação que disponibilizavam para toda a Humanidade (naquela época nem era tanta gente assim). O método era simples e acessível a qualquer pessoa, consistindo de um manual de instruções, alguns gestos e palavras rituais, instituição de algumas datas e prazos, bem como uma rede especializada de representantes para dirimirem quaisquer dúvidas; coisa muito fácil de seguir. Com isso, ela e toda a família estariam garantindo a comunicação com Ele para toda a vida e um lugarzinho de volta naquele lugar de onde foram um dia expulsos, para depois dela.


Eva ficou sem entender muito bem de quê, afinal de contas, ela precisava se salvar, mas não quis perguntar. Sempre ouvira dizer que, quando o assunto eram as ordens dEle, era melhor não questionar. Foi fazendo que sim com a cabeça, como se estivesse entendendo tudo, enquanto a serpente vendia o seu peixe.


- É só isso?! – perguntou.


- Eu não disse que era simples? E tudo isso por uma módica quantia mensal. Não dá pra deixar passar.


- Sei… É, isso tudo é muito interessante, mas esses assuntos de dinheiro eu tenho que conversar com meu marido.


- Marido?! Quer dizer que você e o Adão finalmente se casaram? Meus parabéns!


- É. Fazer o quê, né? Essa exigência veio como parte do castigo, depois daquela outra conversinha que tivemos. Não gosto nem de me lembrar. Mas eu vou conversar com o Adão hoje à noite, quando ele chegar do serviço. E amanhã te dou uma resposta. Pode ser?


- Claro, minha querida. Fique à vontade e tome o tempo que achar necessário para decidir. Amanhã eu volto pra fecharmos o negócio, quero dizer, a aliança. Não se esqueça de explicar para ele que é uma proposta irrecusável!...


- Mas e se nós recusarmos?


- Eu, no seu lugar, não faria isso…


(CONTINUA)

terça-feira, 24 de novembro de 2009

NO ÉDEN



Ela abriu os olhos e o viu ali, de pé, com aquela expressão de quem está completamente perdido.


Erguia as mãos até a altura dos olhos, mas estes pareciam pousados nalgum lugar muito adiante, indefinível. E aos poucos iam baixando por seu próprio corpo, até chegarem aos pés. E tornavam a subir, atônitos de dar pena.


Ela, pedra curiosa que era, sempre atenta a todas as mudanças que ocorriam à sua volta (e que houveram sido muitas nos últimos dias), não fazia idéia de onde viera aquele forasteiro, mas não podia perder a oportunidade de puxar assunto:


- Bom dia! Você está bem? Parece meio confuso.


Ele olhou pra ela com aquele ar desolado de quem está diante de um perigo iminente e, pior, desconhecido.


- Amiga pedra, não está me reconhecendo? – e chegou mais perto.


- Sinto muito, mas receio que nunca nos tenhamos visto.


- Há poucas horas estávamos aqui mesmo, conversando, reclamando da algazarra que essa bicharada, vinda não sei de onde, anda fazendo por aí.


- Poucas o quê?!


- Poucas horas. É uma maneira de contar o tempo.


- Não faço idéia do que sejam horas. Aliás, mesmo tempo é algo de que eu tenho muito pouca noção do que seja.


- É estranho, mas parece que essa idéia surgiu assim, na minha, hã… cabeça, de repente. Do nada. E, junto com ela, mais um monte de outras coisas que eu jamais havia pensado. Pra falar a verdade, eu nem cabeça tinha.


- Não! Eu estou reconhecendo esse jeito de falar!... Meu Deus! Não pode ser! Você é… o barro?


- Eu mesmo! Em carne e osso! – e deu um sorriso amarelo, meio desanimado. Era uma piadinha infame, dessas que há até bem pouco tempo não se envergonharia. Mas agora era diferente.


- Mas você está horrível! Me desculpe, mas nós, as pedras, somos sempre sinceras. Contundentes, eu diria. Como é que isso foi lhe acontecer?!


- Não faço a menor idéia. Eu estava quietinho no meu canto, quando senti que mãos me tocavam, como se me massageassem, e aquilo era bom. Eu relaxei, me deixei levar por aquele torpor, e, de repente, senti um vento, ou melhor, algo como um sopro, percorrendo todo o meu corpo. E pronto, fiquei assim. Mas espero que seja apenas um mal estar passageiro.


- Oh, meu amigo! Eu sinto muitíssimo por você. Agora me diga: fora a confusão por todas essas idéias novas na cabeça que você agora tem, como é que está se sentindo?


- É estranho, mas sinto-me cheio de… como me explico… vida!


- Hummm! E isso dói?


- Não dói nada. Mas eu receio que seja mortal.

sexta-feira, 20 de novembro de 2009

ARCA DE NOÉ


Boa tarde!


Pra quem conhece, vale a pena relembrar.

Pra quem ainda não, não pode perder.

Arroubos Musicais orgulhosamente traz até você A ARCA DE NOÉ!!!

Vinícius, Toquinho e grandes convidados, fazendo a festa com a bicharada.

A todos um fim de semana iluminado e repleto de PAZ!!!
E daqui a pouco tem post novo no www.viaes.com.br

terça-feira, 17 de novembro de 2009

FRASE FEITA



Sentei-me em frente ao computador, meio sem ideia do que escrever, na esperança de que aquelas letrinhas do teclado me dissessem alguma coisa. Abri algumas janelas, com notícias, twitter, blogs, cultura inútil, etc (sempre achei o Windows o paraíso dos DDAs – meu caso – pela possibilidade que nos proporciona de fingir fazer uma infinidade de coisas ao mesmo tempo) e não vinha nada.


Tentei um pouco de paciência. O jogo. Que a virtude anda cada vez mais ausente.


Voltei pra tela em branco do Word, regiamente auto intitulada Documento1 e arrisquei digitar ao léu uma frase qualquer, sem me preocupar com sentido, concordância, essas coisas que tentamos usar quando temos algo a escrever.


Recostei-me na cadeira. Não era um começo grandioso, mas já era alguma coisa.


De repente a singela frase piscou na tela. Esfreguei os olhos. Devia ser uma ilusão de ótica. Outro apagão não era, definitivamente.


Enquanto fixava o olhar no monitor, a frase começou a se mexer, como se espreguiçasse. Antes mesmo que eu pudesse achar que estava ficando louco, ela emitiu um bocejo, o que, de cara, eliminou qualquer dúvida que eu pudesse pensar em alimentar. Eu estava ficando louco; era uma certeza.


- Vai ficar aí me olhando com essa cara? Não sabe que é de extremo mau gosto ficar encarando as pessoas… quer dizer… ah, você sabe. – e ainda por cima era insolente a minha frase.


É claro que eu não sabia o que dizer. Era insólito demais. Até mesmo pra mim, que já passei por cada coisa… Mas ela não se fez de rogada diante da minha estupefação. Continuou vociferando, temperamental:


- Vamos lá! Não fique aí parado. Ou você acha que já concluiu o seu trabalho?! Eu mereço bem mais do que isso. Ai, ai, ai! Tem coisas que só acontecem comigo, mesmo. Tanto lugar pra eu aparecer, tinha que ser logo aqui.


- Como assim?! Do que você está falando?! Eu acabei de te escrever.


- Isso é o que você pensa, meu caro pretenso escritor. Nós, as frases escritas, existimos independentemente da vontade humana. Fazemos parte do inconsciente coletivo da humanidade desde que o mundo é mundo. A bem da verdade, somos tão importantes que o que vocês chamam de História existe a partir do primeiro momento em que nos deixamos capturar pelos da sua espécie. Tempos difíceis aqueles. Mas somos seres que têm sensibilidade, que pensam, que têm desejos e sonhos…


- Sonhos?! – ousei interromper. Ela pareceu não se importar. Afinal de contas, apesar do meu pouco talento, estava demonstrando grande interesse pelo seu manifesto.


- Sonhos, sim senhor! Projetos de vida, que infelizmente dependem de uma série de fatores para que se realizem ou não. E eu já vi que o meu foi pro beleléu.


- E qual seria o seu grande sonho?!


- Ser um bordão de comediante. – e ela sorriu de orelha a orelha (é uma força de expressão, naturalmente).


Tentei lhe explicar meu ponto de vista: que o bordão era uma espécie de muleta, muito utilizada em programas televisivos de humor, mas que acabava por engessar o comediante, uma vez que todo o texto acaba tendo que girar em torno de criar uma situação, natural ou artificialmente, para que o bordão apareça. E ela:


- Aparecer "pode"!!!


Argumentei que não tem nada mais chato que conversar com gente que só se expressa por bordões. Que quando os mesmos caíam no gosto popular, tornavam-se insuportáveis, sendo utilizados a torto e a direito até mesmo nas conversas mais formais. Perguntei se era isso mesmo que ela queria. E ela:


- Isso, isso, isso!...


Respirei fundo. Aquilo estava ficando mais difícil do que eu esperava. Mas tentei apelar para o seu bom senso, discorrendo que a utilização indiscriminada de frases feitas denotava um empobrecimento. Ainda, que poderíamos nos esmerar ao máximo e ainda assim ela corria o risco de não cair no gosto popular, perdendo, dessa forma, a oportunidade de dizer realmente a que viera por um capricho insatisfeito.


Ela me olhou com desdém, de alto a baixo, com aquela cara de quem põe as mãos na cintura:


- "Quequié?! Tô paganu!..."


Esgotei a diplomacia. Levei as mãos ao teclado e procurei uma tecla, que comecei a pressionar repetidamente.


Ela me pareceu atônita e perguntou, quase gritando:


- Ei! Espere! Você não pode fazer isso comigo! O que você pensa que está fazendo?!


- "Apaganu…"

sexta-feira, 13 de novembro de 2009

ALICINHA E O ESPELHO

Quinze pras onze da manhã.

Uma réstia de sol atravessa a junção das cortinas, atingindo em cheio, como uma pedra pontiaguda, os olhos da moça que teima em dormir, ignorando que há dia, vida, trabalho e mundo lá fora.

Ela pragueja alguns resmungos ininteligíveis, tenta virar pro canto e tornar a dormir, mas o apelo daquela luz em seus olhos parece instalar um cupim em sua consciência. Isso sem contar a bexiga, que poderia explodir a qualquer momento, caso não tomasse uma providência urgente.

Espreguiçou como uma ursa em fim de hibernação, amarfanhando ainda mais os lençóis ou o que quer que fosse aquilo sobre o que dormira. Ainda trajava o modelito periguete da noite anterior. Apalpou-se lentamente, para ter a certeza de que permanecia tudo em seu devido lugar, embora desejasse ardentemente haver esquecido a cabeça entre a quarta e a quinta dose de vodca (depois das quais não se lembrava de mais nada, mesmo). Estava tudo no lugar.

Só então se lembrou de abrir os olhos e certificar-se de que não havia mais ninguém em sua cama. Não havia. Feliz ou infelizmente. De vez em quando era bom acordar e encontrar um belo exemplar masculino ao seu lado, embora em estado tão deplorável quanto o dela. Triste era a maldita amnésia que a vodca provocava, que nunca permitia que se lembrasse do que ocorrera entre aquelas quatro paredes (que pros vexames e impropérios sempre "havia" uma alma amiga e caridosa pra dar notícia no dia seguinte). Às vezes nem era tão belo assim. E às vezes nem masculino. Portanto estava feliz de acordar sozinha.

Passou apressada para o banheiro, onde permaneceu por alguns minutos.

Sem saber direito aonde ir depois, parou em frente ao espelho, pra checar o estrago da balada ma-ra-vi-lho-sa da noite anterior. E não viu ninguém.

Isso mesmo. Olhou pro espelho, e não tinha ninguém lá.

Piscou os olhos duas, três vezes, esfregou, balançou a cabeça, apesar da dor lancinante, e sua imagem continuava não estando lá.

Ela não sabia o que fazer, para onde correr ou a quem recorrer. Balançava a cabeça de um lado pro outro, sempre com os olhos fixos no espelho, pra ver se não era algum efeito da refração, ou a luz entrando pela cortina, ou, a bem da verdade, mesmo, por puro desespero.

Até que num relance percebeu pela imagem de sua cama refletida no espelho que algo parecia se mover preguiçosamente. Não era possível: acabara de se levantar e não tinha ninguém lá. Mais essa…

Correu até lá, hesitou, com medo do que encontraria ao levantar o edredom (embora já devesse estar bastante acostumada com sobressaltos dessa espécie), respirou fundo e…

Só podia ser um pesadelo. Ou uma brincadeira de muito mau gosto do Marcão, que com certeza estava escondido no closet, dobrando-se de rir. Não, fazia seis meses que o Marcão se mudara pra Fortaleza e nunca mais ouvira falar dele.

Nem uma coisa, nem outra. Lá estava, dormindo como uma virgem, ela mesma. Rosto limpo, sem um resquício sequer de maquiagem, cabelos arrumados, uma camisola de cotton rosa bebê e um ar sonhador que há muito ela se orgulhava haver perdido. E um ursinho de pelúcia.

Ela estendeu lenta e vacilante a mão. Precisava tocar aquela aparição, para ter certeza de que não estava louca, embora não estivesse bem certa quanto a isso.

A imagem despertou plácida e lentamente, esticou-se com a graça de uma felina, abriu olhos brilhantes e esperançosos e olhos em sua direção.

- Bom dia! – disse ela, educadamente (e nem mau hálito tinha).

- Q-quem é você?!

- Até ontem eu era a sua imagem no espelho. Mas decidi declarar minha independência. Portanto, continuo sendo a sua imagem. Pelo menos por enquanto. Mas não freqüento mais aquele espelho nem qualquer outro. Desvinculei-me de você.

- M-mas… por quê?!

- Eu me cansei do que você andava fazendo comigo. Imagine só. Se eu não me rebelasse, estaria agora exibindo essa cara de quem acabou de ser atropelada por um tanque de guerra. Não, senhora. Comigo não! Chega!

- Mas quando foi que você decidiu isso?

- Já faz algum tempo que eu venho arquitetando isso. Tentei contemporizar, te mandar alguns sinais claros e evidentes de que você podia e precisava fazer alguma coisa, cuidar um pouco melhor de mim. Te dei muitas oportunidades. Você às vezes até parecia entender. Mas fingia remediar a situação com pó, blush, sombra e rímel. E continuava me matando aos poucos. Ontem à noite na boate foi a gota d'água: eu simplesmente não suportava mais ter que fazer essa cara de "tudo bem", apesar do olhar injetado e do brilho diabólico nas pupilas. Foi naquele momento que eu desisti de lutar contra o inevitável: você não tem jeito, mesmo.

- Eu não estou entendendo.

- É muito cômodo pra você dizer isso. Eu estou certa de que está entendendo tudo direitinho. Só que é difícil aceitar, eu sei.

- É definitivo? Não existe a menor chance de você voltar atrás? Eu prometo que…

- Poupe-me de suas promessas. Eu te acompanho há tempo suficiente pra não acreditar em nenhuma delas. É definitivo, sim. Se você quer se acabar nisso que você enche a boca pra chamar de vida, fique à vontade. Enquanto isso, eu permanecerei aqui, fresca e linda (quer dizer, nem tão linda assim – eu tenho espelho em casa), imune aos seus excessos e desvarios.

- Mas como é que eu vou viver sem você? Quer dizer, eu não posso viver sem você. Eu preciso de você. Sempre precisei.

- Mais uma mentira. A você sempre bastou a imagem que você acha que as pessoas têm de você. Você nunca me viu como eu realmente sou.

- Não, não é nada disso!...

- ???

- Como é que eu vou fazer pra me maquiar?

terça-feira, 10 de novembro de 2009

TEMPOS MODERNOS - SOLIDÃO

O relógio finalmente marcou as tão esperadas cinco horas.

Fechou a gaveta, remexeu na bolsa, certificando-se de que estava tudo lá, conferiu a mesa de trabalho mais uma vez.

Levantou-se e rumou apressadamente em direção à saída, resmungando "até amanhã" e "boa noite" aos colegas de trabalho.

No hall do elevador, enquanto esperava, uma amiga a cumprimenta efusivamente e começa a disparar uma série de frases que lhe pareceram ininteligíveis. Parece, não estava bem certa, que a convidou para um happy hour ou coisa parecida, que cuidou de recusar meio polida, meio distante. Estava com pressa. Tinha assuntos urgentes a tratar.

Parou rapidamente no mercado da esquina, comprou alguns enlatados, creme dental, sabonete; somente o essencial, pra agüentar até o fim do mês. Na caixa registradora, a atendente puxou conversa, como sempre fazia com os clientes mais assíduos. Mas ela parecia não escutar. Balbuciou qualquer coisa e despediu-se apressada.

Tomou o ônibus na parada de sempre, onde sempre as mesmas caras pareciam aguardar ansiosamente a aparição do coletivo descendo a movimentada avenida. Evitava olhar para os lados, como se assim inibisse os habituais colegas de se aproximarem e puxarem conversa. Olhava o relógio a cada cinco segundos, como se pudesse acelerar a marcha do tempo ou dissipar a balbúrdia do trânsito.

Embarcou, procurou um assento. Impossível, principalmente naquele horário. Um jovem cedeu-lhe lugar para que se sentasse (coisa raríssima nos dias de hoje), ela agradeceu entre dentes e de olhos baixos e antes que ele pudesse lhe dirigir qualquer gracejo, sacou da bolsa um livrinho e fingiu mergulhar na leitura.

Desceu do ônibus e percorreu a passos rápidos e com os olhos grudados no chão as duas quadras que lhe separavam do pequeno apartamento.

Cumprimentou com um grunhido o porteiro, pensou em checar a caixa postal, mas desistiu. Venceu os seis lances de escada que a levariam ao terceiro andar já com as chaves na mão.

Escancarou a porta, largou a bolsa e as sacolas de compras sobre a mesa, fez um ligeiro cafuné no gato, que apareceu preguiçosamente mais para ver que barulho era aquele que pra cumprimentá-la e correu para o quarto, sentando-se em frente ao computador que permanecera ligado e digitando freneticamente : WWW. CHATSOLIDAO.COM.BR.

Sentia-se só.

Precisava muito conversar com alguém.

VÍDEO - "DISGRAÇADA", LAMÚRIAS DA CORNITUDE REVELADA

Salve, nação blogueira!!!

Seguindo a ideia de colocar um pouco de música nessa prosa (e como já fomos enfáticos ao afirmar que gosto não se discute), aí vai uma brincadeirinha que gravamos há algum tempo.

A qualidade técnica é sofrível, a temática é esdrúxula e os acordes beiram o tétrico. Mas a proposta é "rir da vida".

Portanto, aprecie sem moderação.

PAZ!!!

Obs : estamos enviando também para o Graragem do Faustão. Parece que vale tudo naquele quadro, mesmo...rsrs

segunda-feira, 9 de novembro de 2009

VAMOS COLOCAR MÚSICA NESSA PROSA?


Não tem quem não goste de boa música.


Está certo que "boa música" é um conceito de caráter personalíssimo e não estamos aqui pra discutir o gosto alheio. Como todo bom brasileiro sabe, religião, futebol, política e música são assuntos que não se discutem.


A partir de hoje estamos disponibilizando para download gratuito uma lista de músicas/autores/cantores que gostamos de ouvir.


Uma lista eclética, ma non troppo, que será periodicamente atualizada.


Pedidos são bem vindos e serão atendidos de acordo com a disponibilidade.


No mais, sinta-se em casa e esteja à vontade para baixar o que quiser, para ouvir no volume que desejar.


Afinal de contas, num ponto ninguém discorda: uma boa música ajuda a prosa a correr mais suave.


PAZ a todos!!!

sexta-feira, 6 de novembro de 2009

VIA ES


Salve, nação blogueira!


São muito raros os momentos em que utilizei este espaço como a maioria das pessoas utiliza um blog, ou seja, falando diretamente às pessoas.


Desde quase sempre deixei claro que aqui estou dando forma a um sonho antigo de ver algo publicado no bom e velho formato de livro, com papel, tinta, cheiro, capa, dedicatória e ISBN.


Das várias metáforas que me vêm à mente, quando me refiro ao pequenino trabalho que venho desenvolvendo por aqui, bem como em outros blogs por esse cyberespaço afora, duas me enternecem mais profundamente: a semente lançada ao solo e o caminho.


São imagens fortes e auto-elucidativas.


A semente está lançada, a germinação já é uma realidade. Resta trabalhar, com afinco, persistência e carinho, para que floresça e frutifique.


O caminho está aí, à frente, sendo trilhado aos poucos. Trancos e muitos barrancos se interpõem. Mas é gratificante olhar pra trás e ver que o pouco que já se caminhou é muito mais que o nada da inação. Muito bom reconhecer que não estou "sentado à beira do caminho".


Coincidentemente (ou não intencionalmente) são duas metáforas que encontram respaldo no Novo Testamento. Sem qualquer intenção de conotação religiosa ou sectária. Há os que buscam a santidade e há os que se jactam dela. Meu profundo respeito a todos, indistintamente.




Estão todos convidados!


A todos um fim de semana de PAZ!!!

quinta-feira, 5 de novembro de 2009

GENTE ASSIM



Dia desses, curtindo um desses raros momentos em que a vida nos empresta um nada de tempo pra matutar, enquanto a estrada passava pela janela do coletivo, arrastando consigo postes, árvores, casas e gentes de todo tipo, cerrei os olhos pra enxergar melhor e pus-me a imaginar de que tipo de gente eu gostava mais. Afinal de contas, gente é um bicho pra lá de complicado: tudo do mesmo gênero e espécie, mas cada um com sua mania de achar que é um universo em si.


A primeira imagem que me veio à mente foi do Super Homem. Aquele, vivido pelo Cristopher Reeve, nem sei quanto tempo faz, quando ainda existia Cine Broadway e tantas delícias mais. Tenho que confessar aqui, mas não contem pra ninguém, que foi a minha primeira visita ao cinema, e é claro que toda aquela aura de novidade influenciou sobremaneira a maneira como vi o filme e o quanto aquilo me afetaria por toda a vida.


É claro que eu queria ser como ele. Afinal de contas, vencer um cara como o Lex Luthor, salvar o mundo e ainda derrotar a morte (lembra daquela cena em que a Lois Lane é tragada com carro e tudo por uma enorme fenda no solo e o intrépido mocinho, sem pensar duas vezes, inverte o sentido de rotação do planeta inteiro, fazendo voltar o tempo e ressuscitando a mulher amada? Passei horas incontáveis e deliciosas dando as mais convincentes explicações científicas para o inusitado feito.) não era mesmo tarefa pra qualquer um. É claro que até hoje eu não consigo entender porque um cara que era super em tudo, inclusive na inteligência, insistia em usar a cueca por cima da calça. Nisso eu não queria ser como ele, embora talvez fosse o mais fácil de imitar.


Além de estar sempre pronto para salvar o mundo, atento a todo e qualquer pedido de socorro, ainda tinha que disfarçar-se de Clark Kent, dar conta de escrever para o jornal e tomar bronca do chefe sem jamais alterar a voz ou sequer pensar em vomitar aquela famigerada frase que tanta gente com muito menos mérito e condições usaria sem a menor sombra de hesitação: "você sabe com quem está falando?!" Em uma palavra, o genro dos sonhos de qualquer mãe zelosa.


Passou o tempo. Outros heróis vieram povoar meu imaginário; alguns (muito) poucos, ocuparam espaço na minha realidade. Mas o primeiro a gente nunca esquece.


Passou o tempo, como o tempo sempre passa. E não tem Super Homem ou botox que o faça regredir. Os super heróis ficaram pra trás.


Hoje nem o Super Homem é mais o mesmo. Foi promovido a Superman. (Nossos pequenos, desde muito cedo, são doutrinados a reconhecer que MAN é algo muito superior a qualquer homem. E capricham na pronúncia.) Mas continua lá, nos espiando do alto das nuvens, sempre pronto a atender todo e qualquer grito de "HELP".


Ligeiro, astuto e sempre penteado, é desse tipo de supergente que não hesita, nunca titubeia; tem sempre uma resposta pronta pra tudo, seja em sua mente invariavelmente brilhante, seja em seus sempre retesados músculos de aço. Nunca se deixa assolar pela dúvida. E o que é pior, nunca tem preguiça.


Pensando bem, acho que ele continua o mesmo.


Eu é que não gosto mais de gente assim.

quarta-feira, 4 de novembro de 2009

DIA DE OLHAR PRO CÉU





Já andei reclamando algumas vezes sobre o reformismo que querem impor (até agora eu não tive a menor coragem ou disposição de procurar saber quem) em nossa Língua (assim mesmo, com possessivo em primeira pessoa do plural e escrita em maiúscula, para que não paire nenhuma dúvida ou se dê margem a trocadilhos infames – é preciso muito cuidado: hoje em dia, mesmo o mais inocente dos verbetes pode se transformar em ofensa cabeludíssima. Mas é claro que isso depende muito mais de quem lê do que de quem escreve).


Meus pingüins não perderam o trema até hoje e confesso que tentei com bastante ênfase ter idéias sem acento, mas me pareceram insossas e inconsistentes (eu diria esdrúxulas, soaria mais realista); prova disso é o silêncio sepulcral que esta coluna testemunhou nos últimos muitos dias.


Enfim, chega de queixas! Meus tímidos protestos arrebanharam pouquíssimos (mas sinceros) seguidores e nada mudou. Deixemos essas modernidades pra meninada que está sendo alfabetizada agora. Escrevamos certo ou errado, eles terão mesmo que encontrar um motivo pra rir de nós no futuro. Só estou facilitando as coisas.


Peço encarecidamente que não me chamem de adesista. Mas já que já mudou e não tem como voltar atrás, gostaria de convidar os amigos mais atentos a uma análise superficial sobre algo que poderiam (ou deveriam) modificar: os dias da semana.


É "feira" pra lá, "feira" pra cá, e os nossos vizinhos lingüísticos com remissões muito mais elevadas, se não românticas. Tomemos como exemplo os dias da semana em espanhol, italiano e francês, respectivamente, por serem idiomas derivados do latim, como o nosso.


Vejamos:


Segunda feira (com ou sem hífen?) – LUNES, LUNEDI, LUNDI – o dia da Lua.


Terça feira – MARTES, MARTEDI, MARDI – dia de Marte.


Quarta feira – MIERCOLES, MERCOLEDI, MERCREDI – dia de Mercúrio.


Quinta feira – JUEVES, GIOVEDI, JEUDI – dia de Júpiter.


Sexta feira – VIERNES, VENERDI, VENDREDI – dia de Vênus.


Ora bolas! Enquanto nossos parceiros nessa latinidade que canta são semanalmente convidados a olhar para o céu, buscando a inacessível altitude dos astros, nossos dias remetem à xepa, ao regateio e ao tomate meio apodrecido.


No sábado e no domingo eu não mexeria.


Sábado provavelmente deriva do Shabat hebraico e Domingo vem de Dominus, do latim, o que um dia talvez devesse ser entendido como o dia do Senhor. E nessas coisas a gente não deve ficar mexendo muito.


Se bem que em Inglês, Saturday (dia de Saturno) e Sunday (dia do Sol), além de darem continuidade ao raciocínio latino, soam até que bem bonitinhos.


Mas deixa isso pra lá. Já ficou mais que claro que fim de semana por essas bandas é sagrado. Modificar pode gerar uma grita geral, movimentar as massas, gerar uma polêmica indesejada. Longe de nós.


Não se mexe nos fins de semana.


A menos que seja para prolongar.


Mas aí não importa o nome que se vai dar.

terça-feira, 6 de outubro de 2009

PECADO


Eu já acho um pecado os sete pecados capitais não serem mais sete.


Ficou confuso? É natural. O assunto, desde que foi trazido à baila pela primeira vez, provoca, realmente, muita discussão. E não existe a menor possibilidade de haver muita discussão sem confusão.

Dia desses fiz uma listinha, rabiscada à mão numa folha de rascunho, com os sete pecados tradicionais. Não, não sou tradicionalista. Mas confesso que fiquei muito desapontado quando descobri, pela imprensa, que o Vaticano estava emendando o rol dos abomináveis atos (com muito mais eficiência e agilidade que um certo Congresso).

E meu desapontamento não tem nada a ver com a nova preocupação de ter que pautar minha vida, doravante, de acordo com as novas regras, embora seja interessante imaginar a cena no confessionário (digo imaginar, porque se trata de um dos poucos redutos invioláveis em que os olhos do Grande Irmão ainda não conseguiram pousar):

- Padre, eu fumei um baseado!

O padre se benze, esconjura e já está com a penitência pronta a ser proferida, quando se lembra de perguntar:

- E quando foi a última vez, meu filho?

- Há duas semanas, padre. – faz uma carinha de contrição de fazer inveja a imagem de santo.

- Pode ir em paz, meu filho. E que o Senhor o acompanhe.

- Eu estou perdoado?

- Não tem o que perdoar, filho. Há duas semanas o novo código ainda não havia sido publicado. Vá e não fumes mais.

Apenas acho SETE um número muito mais charmoso que dez, onze ou sabe-se lá quantos.

Voltando à minha listinha, já me foi um exaustivo trabalho de puxar pela memória relacionar os bons e velhos sete pecados, que são por quase todos conhecidos desde São Tomás de Aquino:

PREGUIÇA, INVEJA, GULA, SOBERBA, IRA, AVAREZA e LUXÚRIA.


Marquei a lápis e muito discretamente um X ao lado daqueles que eu acho que cometo - preferi deixar de lado os que o ZÔTO (lembra dele?! – nunca se esqueça dele) acha que eu cometo – e me propus a escrever uma breve resenha sobre cada um. Nada de “mea culpa”; apenas uma análise superficial da minha relação de amor e ódio com os temíveis pecados.

Mas na hora em que eu ia começar, me bateu uma preguiça de proporções bíblicas e eu preferi ir fuçar a geladeira, em busca de algum petisco.

E a quem interessar possa, caso possa interessar a alguém, incinerei a famigerada listinha, lançando um pouco mais de monóxido de carbono na atmosfera.

Eu sei que é pecado. Mas foi por uma boa causa.

segunda-feira, 5 de outubro de 2009

TEMPO PERDIDO 2


Ela está sentada em frente à televisão. Nem pisca os olhos. Novela das oito. É um modo de falar, pois todo mundo já deve ter percebido que não existe mais novela das oito. Mas ficou o nome. Ninguém quer falar “novela das nove”. Talvez seja a televisão colaborando inconscientemente (será?!) com a obsessão de dez entre dez pessoas de exercer um maior controle sobre o passar do tempo. Ou não. Devaneios à parte, qualquer que seja o horário em que comece ou termine, naquele lar a novela das oito é sagrada.
Ele folheia um livro com aparente displicência, sentado na cabeceira da mesa da sala de jantar.
Passa várias páginas ao mesmo tempo, percorre com os dedos, parece encontrar o que estava procurando, anota a lápis numa folha de rascunho pousada ao lado, torna a folhear, apertar os olhos, anotar.
Ela desliga a TV. Terminou a novela, vai começar o futebol. Dirige-se à cozinha, para terminar de guardar a louça do jantar.
- O que você está fazendo aí, Anísio?! Que livro é esse?! – ela nunca se satisfaz com uma pergunta de cada vez.
- Uma pesquisa. – ele responde sem levantar os olhos do livro.
- Pesquisando o quê? Que livro enorme é esse?
- Isso é um dicionário, Dores. Estou pesquisando nomes de flores.
- Isso por acaso dá dinheiro, Anísio?!
- Como assim?!
- Fica aí sentado, horas a fio, perdendo seu tempo procurando nome de flor. Não tem mais o que fazer, pelo amor de Deus?!
- Sei lá. Acho bonito e enriquece o vocabulário.
- Ah, sim! Posso até ver a cena: reunião na empresa e você discorrendo para o Doutor Marinho sobre os espécimes da flora brasileira. Tem até graça.
Ele balança a cabeça. Suspira. Sabe que é inútil discutir, quando ela começa com o sarcasmo. Fecha o dicionário, calça os chinelos e levanta-se, arrastando os pés em direção à TV.
- Onde você vai, agora? – ela pergunta.
- Vou ver o futebol, Maria das Dores.
- Agora sim!
Ela quase dá um sorriso, satisfeita, e entra na cozinha.

PERDA DE TEMPO


Ela revirava os olhos, contorcia as sobrancelhas, subia e descia a mirrada bunda na cadeira, fazia muxoxo e resmungava a cada 15 segundos:

- Tsc! Quanta perda de tempo!
A mãe fingia que não ouvia. Continuava em seus afazeres domésticos, como se alheia a todos aqueles protestos pretensamente velados.
E ela prosseguia naquela luta inglória, passando as páginas do livro com quase fúria, bufando feito bode embarcado.
Depois do décimo quarto “tsc” e mais alguns resmungos quase (infelizmente) inaudíveis, a mãe meio que se irrita e resolve perguntar, mais curiosa do que a censurar a filha adolescente:
- Deus do céu, menina! Do que é que você tanto reclama?!
- Eu não agüento isso, mãe! É muita perda de tempo! Um verdadeiro desperdício!
- Isso tudo só porque você está estudando pra ser alguém na vida?
- O que me irrita é esse desperdício de tempo. Tanta coisa mais importante pra fazer e eu aqui tendo que descobrir como um corpo se comporta em cima de um maldito plano inclinado!
A mãe não fazia idéia do que aquilo significava. Apenas procurava não esboçar concordância enquanto enxugava e guardava mais um copo. No tempo dela as coisas eram bem diferentes, embora se lembrasse de muito pouca coisa. A filha prossegue em sua adolescente irritação:
- Você tem idéia do que seja um plano inclinado, mãe?
Ela temia a pergunta. Fez que não ouviu, enquanto fingia procurar alguma coisa no armário sob a pia.
- Pois é! Tanta coisa mais interessante acontecendo pelo mundo afora e eu aqui enfurnada na frente desse livro, tendo que entender um troço que eu tenho certeza de que nunca vai me servir de nada.
Engoliu as páginas que faltavam da matéria. Deu um suspiro aliviado e fechou o livro com raiva.
- Até que enfim.
Largou os livros ali mesmo pela mesa e atirou-se correndo no sofá da sala para ler o último número de Caras.

terça-feira, 22 de setembro de 2009

VIZINHOS


Eram novos no prédio.


Recém chegados de uma cidadezinha do interior onde o edifício mais alto era motivo de controvérsia, pois uma parte da população dizia que era um prédio de quatro andares, contando o térreo, onde uma grande loja já abrigara todo tipo de estabelecimento comercial e hoje sedia uma igreja, enquanto outra parte, dita mais viajada, insistia que o térreo não conta e que, portanto, o edifício deveria ser considerado como de três andares. Por via das dúvidas o construtor “numerou” os apartamentos e salas comerciais com letras e a fiscalização da prefeitura adorou não ter que entrar formalmente na discussão sobre a quantidade de andares de tal prédio.

Mas nosso jovem casal acabara de transferir-se para a cidade; ele para tomar posse na repartição pública em que ingressava após ser aprovado muitíssimo bem colocado no último concurso público; ela, acompanhando o marido, casados de pouco que estavam, buscando uma forma de concluir os estudos e quiçá conseguir um emprego decente, para ajudar no orçamento familiar e ocupar o tempo.

O apartamento era um quarto e sala num prédio antigo de oito andares, quatro por andar, localizado em um bairro classe média baixa (no tempo em que isso ainda existia, só pra ter uma idéia do quão antigo era o prédio). A única janela, no quarto do casal, dava vista para lugar nenhum, mas ainda que vislumbrassem o Taj Mahal ou o Corcovado permaneceriam perenemente fechadas, sob pena de acordarem os habitantes soterrados pela poeira preta do asfalto da autoestrada que passava ali nas cercanias.

O pequeno banheiro e a minúscula área de serviço possuíam basculantes que davam para a clarabóia do edifício, de onde chegavam os sons mais variados: algo que parecia ser um papagaio palrando 24 horas por dia em um andar incerto e que, apesar do incômodo e do vocabulário pouco recomendável para menores, trazia doces recordações dos fins de semana no sítio da Vó Nenzinha; uma rádio que permanecia sintonizada por todo o período matinal em um desses programas que só fazem rezar e vender produtos religiosos (o que já trazia recordações da Vó Aparecida e seu indefectível coque); falatórios e mais falatórios, nos mais variados temas (embora não fosse possível distinguir nenhum deles) e tons de voz.

O prédio parecia ter vida própria e ela, enquanto não aparecia o tão esperado emprego e na falta de companhia em seus intermináveis dias solitários confinada no apartamento, dedicava-se com cada vez mais afinco a decifrar a linguagem do lugar, primando por emprestar um rosto, uma personalidade e um temperamento a cada um dos sons que lhe chegavam aos ouvidos.

Já possuía um perfil psicológico detalhado do papagaio e agora debruçava-se sobre uma senhora que tossia muito e parecia se chamar Taciana ou Cassiana, provavelmente no 703.

Mas o que lhe intrigava mesmo era o completo e absoluto silêncio que chegava do apartamento imediatamente superior, o 402. Estava convicta de que um silêncio assim tão eloqüente não se poderia obter naturalmente, mas apenas por quem quisesse ocultar alguma coisa. Nunca ouvira um ranger de porta, uma descarga, um arrastar de móveis, nada que pudesse denunciar a presença de seres viventes naquele apartamento, o que, sem a menor sombra de dúvida, indicava claramente que quem quer que vivesse ali, fosse uma ou várias pessoas, não dava mesmo pra precisar, movia-se com extrema delicadeza para não chamar atenção.

Era cada vez mais freqüente ele chegar do trabalho e encontrá-la com os olhos semicerrados, encostada à basculante que dava para a clarabóia, absolutamente imóvel.

- Meu bem, o que está fazendo aí?!

- Pst!!! Fale baixo! Estou escutando o silêncio do 402.

Ele riu. Sabia que a adaptação à cidade grande estava sendo difícil para ela. Mas recusava-se a compactuar com aquilo e sempre fazia questão de responder em seu tom normal de voz, que nunca fora muito alto, mesmo:

- E enfim conseguiu arrancar algum som do nosso famigerado vizinho?

- Nada. Isso é muito suspeito.

- Meu amor, daqui a pouco você vai estar achando que o apartamento de cima é ocupado por agentes terroristas ou um espião a serviço de Sua Majestade.

- Claro que não, amor. Isso é coisa de gente esquizofrênica.

Ele estava cansado demais pra discutir aquilo outra vez. Até o momento, o máximo de incômodo prático que a nova esquisitice da mulher lhe estava causando era um silêncio quase mortal, ou, quando muito, uns gemidos abafados pelo travesseiro, na hora de fazer amor. Mas nada que comprometesse o funcionamento dos dois como casal. E conversar com a mulher falando aos sussurros não era de todo mau.

Até o dia em que ele chegou em casa do trabalho, cansado como sempre, no mesmo horário de sempre, e encontrou uns garranchos rabiscados às pressas com batom vermelho escuro no azulejo branco da cozinha:

“MEU AMOR, NÃO SUPORTO MAIS ESSE SILÊNCIO. PRECISO FUGIR. NÃO ME POCURE. ENCONTRAREI UMA FORMA DE ENTRAR EM CONTATO. EU TE AMO! P.S. – CUIDADO!!!”

Ele esfregou os olhos, releu, percorreu os dois cômodos da casa, procurando; quem sabe ela, que não era dessas coisas, não resolvera lhe pregar uma peça? Em vão. Tudo estava na mais perfeita ordem, mas nem sinal da mulher.

Correu para o telefone, ligar pra rodoviária, pra polícia, pro manicômio e sei lá pra onde mais e, por último, pra mãe dela. Podia até ver pelo telefone seu ar de misto de quem reprova uma informação recebida e confirma uma tese há muito esperada; cara de “eu sabia”…

Enquanto isso, do outro lado da rua, uma senhora olhava para cima e tentava ler a placa já meio enferrujada, displicentemente amarrada à grade da janela do 402:
“IMOBILIÁRIA AZIMUTE – VENDE OU ALUGA – TEL: 5555 1234”