quinta-feira, 26 de novembro de 2009

EVA E A SERPENTE



Anos depois da expulsão, quando já menstruava regularmente (e se preocupava quando não), tinha dores para parir e suava as folhinhas de parreira pra conseguir o próprio sustento, que o que o Adão andava fazendo mal dava pra cesta básica, nossa querida Eva foi surpreendida, enquanto estendia fraldas no varal, por uma discretíssima e sibilante voz feminina, vinda não se sabe de onde (nem se assustou, naquele tempo era muito comum ouvirem-se vozes vindas não se sabe de onde, embora na maioria das vezes fosses tonitruantes e masculinas):


- Ora, ora, se não é a minha queridíssima amiga Eva.


Eva olhou para os lados, não viu ninguém. Então abaixou-se para apanhar um prendedor de roupa que caíra e deu de cara com a serpente, aquela, fitando-a com um olhar hipnoticamente sedutor e um largo sorriso cínico na mirrada cara.


- O que você quer? Não vê que estou ocupada? – havia uma certa mágoa em sua voz. É claro que a interlocutora fingiu não perceber.


- Que bom que percebo que não está mais magoada comigo. Pois lhe trago uma proposta que mudará para sempre a sua vida e a dos seus.


Eva revirou os olhos e bufou. Da última vez que ouvira essa conversa (e caíra nela), deu no que deu. Passou os olhos rapidamente pelo monte de estrias na barriga flácida, culote, celulite, olhos bem nos olhos da serpente, sem muito disfarçar sua ira, e respondeu entre dentes:


- Eu agradeço a sua consideração, querida amiga, mas no momento não estou interessada.


- Mas você ainda nem ouviu o que tenho a lhe propor. – e, nesse momento, começou a enrolar-se lentamente na perna direita da Eva, levantando a cabeça alto o bastante para melhor fitá-la nos olhos e baixo o suficiente para que conservasse uma idéia de humildade perante a sua interlocutora. – Se me permitir, em alguns minutos eu lhe explico e então você poderá decidir com conhecimento de causa. Afinal de contas, é uma proposta que vem do Chefe…


- D'Ele? – pigarreou e olhou temerosa para o alto. Imaginou que Ele pudesse estar testemunhando essa conversa, envergonhou-se de estar usando folhas de parreira não muito adequadas para a ocasião, mas agora era tarde, não dava pra entrar em casa e se produzir. – E por que Ele escolheria você pra vir me fazer uma proposta?!


A serpente alargou ainda mais seu sorrisinho cínico. A isca havia sido mordida.


- Digamos que seja pelo meu poder de persuasão.


- Hum. Conheço bem. Mas como eu posso ter certeza de que você fala em nome dEle?


- Eu juro por Ele! – e fez carinha de santa. Quem conhece serpente, bem deve saber que jura desse bicho não é coisa em que se acredite. Mas supomos que a nossa amiga fosse um tanto quanto simplória, dada a acreditar em toda sorte de promessas, por mais que se desse mal (ainda existe gente assim). Pois não é que acreditou?


- Então vamos à sua proposta. Quer dizer, dEle. – e nisso a serpente ia se enrolando cada vez mais alto em suas pernas.


Começou então a discorrer, didática e pausadamente, como quem explica um assunto de gente grande a uma criança de sete anos, sobre o plano de salvação que disponibilizavam para toda a Humanidade (naquela época nem era tanta gente assim). O método era simples e acessível a qualquer pessoa, consistindo de um manual de instruções, alguns gestos e palavras rituais, instituição de algumas datas e prazos, bem como uma rede especializada de representantes para dirimirem quaisquer dúvidas; coisa muito fácil de seguir. Com isso, ela e toda a família estariam garantindo a comunicação com Ele para toda a vida e um lugarzinho de volta naquele lugar de onde foram um dia expulsos, para depois dela.


Eva ficou sem entender muito bem de quê, afinal de contas, ela precisava se salvar, mas não quis perguntar. Sempre ouvira dizer que, quando o assunto eram as ordens dEle, era melhor não questionar. Foi fazendo que sim com a cabeça, como se estivesse entendendo tudo, enquanto a serpente vendia o seu peixe.


- É só isso?! – perguntou.


- Eu não disse que era simples? E tudo isso por uma módica quantia mensal. Não dá pra deixar passar.


- Sei… É, isso tudo é muito interessante, mas esses assuntos de dinheiro eu tenho que conversar com meu marido.


- Marido?! Quer dizer que você e o Adão finalmente se casaram? Meus parabéns!


- É. Fazer o quê, né? Essa exigência veio como parte do castigo, depois daquela outra conversinha que tivemos. Não gosto nem de me lembrar. Mas eu vou conversar com o Adão hoje à noite, quando ele chegar do serviço. E amanhã te dou uma resposta. Pode ser?


- Claro, minha querida. Fique à vontade e tome o tempo que achar necessário para decidir. Amanhã eu volto pra fecharmos o negócio, quero dizer, a aliança. Não se esqueça de explicar para ele que é uma proposta irrecusável!...


- Mas e se nós recusarmos?


- Eu, no seu lugar, não faria isso…


(CONTINUA)

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