sexta-feira, 13 de novembro de 2009

ALICINHA E O ESPELHO

Quinze pras onze da manhã.

Uma réstia de sol atravessa a junção das cortinas, atingindo em cheio, como uma pedra pontiaguda, os olhos da moça que teima em dormir, ignorando que há dia, vida, trabalho e mundo lá fora.

Ela pragueja alguns resmungos ininteligíveis, tenta virar pro canto e tornar a dormir, mas o apelo daquela luz em seus olhos parece instalar um cupim em sua consciência. Isso sem contar a bexiga, que poderia explodir a qualquer momento, caso não tomasse uma providência urgente.

Espreguiçou como uma ursa em fim de hibernação, amarfanhando ainda mais os lençóis ou o que quer que fosse aquilo sobre o que dormira. Ainda trajava o modelito periguete da noite anterior. Apalpou-se lentamente, para ter a certeza de que permanecia tudo em seu devido lugar, embora desejasse ardentemente haver esquecido a cabeça entre a quarta e a quinta dose de vodca (depois das quais não se lembrava de mais nada, mesmo). Estava tudo no lugar.

Só então se lembrou de abrir os olhos e certificar-se de que não havia mais ninguém em sua cama. Não havia. Feliz ou infelizmente. De vez em quando era bom acordar e encontrar um belo exemplar masculino ao seu lado, embora em estado tão deplorável quanto o dela. Triste era a maldita amnésia que a vodca provocava, que nunca permitia que se lembrasse do que ocorrera entre aquelas quatro paredes (que pros vexames e impropérios sempre "havia" uma alma amiga e caridosa pra dar notícia no dia seguinte). Às vezes nem era tão belo assim. E às vezes nem masculino. Portanto estava feliz de acordar sozinha.

Passou apressada para o banheiro, onde permaneceu por alguns minutos.

Sem saber direito aonde ir depois, parou em frente ao espelho, pra checar o estrago da balada ma-ra-vi-lho-sa da noite anterior. E não viu ninguém.

Isso mesmo. Olhou pro espelho, e não tinha ninguém lá.

Piscou os olhos duas, três vezes, esfregou, balançou a cabeça, apesar da dor lancinante, e sua imagem continuava não estando lá.

Ela não sabia o que fazer, para onde correr ou a quem recorrer. Balançava a cabeça de um lado pro outro, sempre com os olhos fixos no espelho, pra ver se não era algum efeito da refração, ou a luz entrando pela cortina, ou, a bem da verdade, mesmo, por puro desespero.

Até que num relance percebeu pela imagem de sua cama refletida no espelho que algo parecia se mover preguiçosamente. Não era possível: acabara de se levantar e não tinha ninguém lá. Mais essa…

Correu até lá, hesitou, com medo do que encontraria ao levantar o edredom (embora já devesse estar bastante acostumada com sobressaltos dessa espécie), respirou fundo e…

Só podia ser um pesadelo. Ou uma brincadeira de muito mau gosto do Marcão, que com certeza estava escondido no closet, dobrando-se de rir. Não, fazia seis meses que o Marcão se mudara pra Fortaleza e nunca mais ouvira falar dele.

Nem uma coisa, nem outra. Lá estava, dormindo como uma virgem, ela mesma. Rosto limpo, sem um resquício sequer de maquiagem, cabelos arrumados, uma camisola de cotton rosa bebê e um ar sonhador que há muito ela se orgulhava haver perdido. E um ursinho de pelúcia.

Ela estendeu lenta e vacilante a mão. Precisava tocar aquela aparição, para ter certeza de que não estava louca, embora não estivesse bem certa quanto a isso.

A imagem despertou plácida e lentamente, esticou-se com a graça de uma felina, abriu olhos brilhantes e esperançosos e olhos em sua direção.

- Bom dia! – disse ela, educadamente (e nem mau hálito tinha).

- Q-quem é você?!

- Até ontem eu era a sua imagem no espelho. Mas decidi declarar minha independência. Portanto, continuo sendo a sua imagem. Pelo menos por enquanto. Mas não freqüento mais aquele espelho nem qualquer outro. Desvinculei-me de você.

- M-mas… por quê?!

- Eu me cansei do que você andava fazendo comigo. Imagine só. Se eu não me rebelasse, estaria agora exibindo essa cara de quem acabou de ser atropelada por um tanque de guerra. Não, senhora. Comigo não! Chega!

- Mas quando foi que você decidiu isso?

- Já faz algum tempo que eu venho arquitetando isso. Tentei contemporizar, te mandar alguns sinais claros e evidentes de que você podia e precisava fazer alguma coisa, cuidar um pouco melhor de mim. Te dei muitas oportunidades. Você às vezes até parecia entender. Mas fingia remediar a situação com pó, blush, sombra e rímel. E continuava me matando aos poucos. Ontem à noite na boate foi a gota d'água: eu simplesmente não suportava mais ter que fazer essa cara de "tudo bem", apesar do olhar injetado e do brilho diabólico nas pupilas. Foi naquele momento que eu desisti de lutar contra o inevitável: você não tem jeito, mesmo.

- Eu não estou entendendo.

- É muito cômodo pra você dizer isso. Eu estou certa de que está entendendo tudo direitinho. Só que é difícil aceitar, eu sei.

- É definitivo? Não existe a menor chance de você voltar atrás? Eu prometo que…

- Poupe-me de suas promessas. Eu te acompanho há tempo suficiente pra não acreditar em nenhuma delas. É definitivo, sim. Se você quer se acabar nisso que você enche a boca pra chamar de vida, fique à vontade. Enquanto isso, eu permanecerei aqui, fresca e linda (quer dizer, nem tão linda assim – eu tenho espelho em casa), imune aos seus excessos e desvarios.

- Mas como é que eu vou viver sem você? Quer dizer, eu não posso viver sem você. Eu preciso de você. Sempre precisei.

- Mais uma mentira. A você sempre bastou a imagem que você acha que as pessoas têm de você. Você nunca me viu como eu realmente sou.

- Não, não é nada disso!...

- ???

- Como é que eu vou fazer pra me maquiar?

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