quarta-feira, 30 de dezembro de 2009

EM DEFESA DO PATRIMÔNIO NACIONAL




A reunião aconteceu a portas fechadas, cercada de sigilo, pompa e circunstância. O assunto era grave e urgente e necessitava da máxima atenção. Nada dos flashes e dos ouvidos das imprensas de todas as cores, para que os participantes pudessem deliberar à vontade, na estrita defesa dos interesses da classe.


Encabeçando a discussão e presidindo os trabalhos, ele, o Saci-Pererê, um líder natural, devido à sua popularidade e notoriedade, não conseguia permanecer sentado. Pulava de um lado para o outro, sentindo falta de seu inseparável cachimbo (Isso mesmo. A lei antitabagista já havia chegado ali, também) e tentando conter a algazarra daquele grupo, no mínimo, bizarro.


Estavam presentes a Mula-sem-cabeça, o Curupira, o Lobisomem (o brasileiro, não aquele dos filmes americanos), a Mãe-d'Água, o Boitatá e o Negrinho do Pastoreio. O Boto também fora convocado, mas não apareceu. Com certeza se enrabichou atrás de algum rabo de saia no caminho e esqueceu da vida.


A pauta daquela reunião extraordinária era o combate à absurda e inaceitável invasão de personagens alienígenas no folclore brasileiro (assim mesmo, cheio de ênfase e adjetivos. Entenda-se, aqui, alienígena não como seres vindos de outros planetas, que, ainda bem, a coisa ainda não chegou a esse ponto; mas estrangeiros, de um modo geral, com especial antipatia pelos vindos do hemisfério norte).


O Saci limpou a garganta, exasperado, e pediu silêncio aos presentes, para que pudessem dar início às discussões. Atrás de si, um imenso mural, de autoria desconhecida, mostrava o momento exato do nascimento de Macunaíma, que era reverenciado como um semideus entre eles.


- Senhoras e senhores, sem maiores delongas, vamos direto ao assunto: nossa classe vem sendo constantemente ameaçada pela invasão de seres alienígenas, completamente estranhos ao cenário folclórico nacional. Estamos seriamente ameaçados de extinção e não podemos simplesmente ficar de braços cruzados, esperando que isso aconteça.


A Mãe-d'Água, suando em bicas, pediu a palavra e perguntou, impaciente:


- Senhor Saci, gostaríamos que fosse mais específico, para que possamos agilizar essa conversa. A que invasores, especificamente, o senhor se refere?


- Ora, minha cara, eu me refiro a todos esses personagens que vêm tomando conta do imaginário popular, ocupando um espaço que outrora nos pertenceu. Falo aqui dos vampiros, dos duendes, elfos e afins, dos cabeça-de-abóbora, ETs das mais variadas origens e espécies, Papai Noel…


Neste momento, a Mula-sem-Cabeça soltou um relincho das profundezas de suas entranhas, batendo irritada os cascos dianteiros sobre a mesa de reuniões. Uma algazarra geral se instalou no recinto, contida a muito custo pelo senhor presidente.


- Está bem, está bem! Me desculpem! Vamos abrir uma exceção para o Papai Noel. – ele já previa que aquele seria um ponto sensível da reunião, que teria que ser trazido à tona outras vezes. O fato é que não tolerava a concorrência com o outro homem do gorro vermelho, aquele que todo mundo esperava, mas era uma questão pessoal, e não podia deixar que isso transparecesse, para não estragar seus planos. - Mas não podemos contemporizar, amigos. Afinal de contas, quantas de nossas crianças, hoje em dia, sabem quando se comemora o dia de Cosme e Damião? Pouquíssimas. Agora, Halloween todo mundo sabe quando é. As escolas não comemoram mais o dia nacional do folclore. E desde que o Lobato nos deixou (era o patrono deles, com direito a busto de bronze em lugar de destaque na sala e tudo mais) vemos cada vez mais nosso espaço minguar, sendo ocupado por bruxinhos ingleses ou vampiros americanos. Precisamos tomar uma atitude urgentemente.


O Lobisomem, visto com certa desconfiança por todos, por ter parentes influentes em Hollywood, tentou colocar panos quentes:


- Caros colegas, não vejo motivo pra tanto alarde. Afinal de contas, a situação é geral e bem mais abrangente. A invasão está ocorrendo em todos os planos. O que precisamos fazer, ao invés de combater, é nos adaptar. Basta olhar por aí: não existe mais lanchonete, é só fast food pra lá e pra cá; placa virou outdoor; tem personal pra tudo que se imaginar. Até a casa da Tia Lúcia, quem não se lembra dela?!, Virou Summer House. O problema, como podem ver, não é só nosso. A globalização é uma realidade e chegou pra ficar.


O Curupira, sempre parecendo alheio a tudo, pediu a palavra e sugeriu:


- Senhor presidente, eu sugiro que estabeleçamos um plano e que o acompanhemos passo a passo.


O saci, escondendo a irritação pelo trocadilho, devolveu, em tom cordial entre dentes:


- Naturalmente, nobre companheiro. Desde que tomemos as precauções necessárias para não andar para trás.


Nova algazarra geral. As gargalhadas do Boitatá incendiaram a assembléia e, quase, a própria mesa.


Nisso entra na sala, de supetão, um autêntico Leprechaun, com sua vasta cabeleira ruiva, sua barbicha desgrenhada e sua indumentária verde da cabeça aos pés, portando um enorme trevo de quatro folhas. Silêncio geral.


- Mister Pererê, eu lamento interrompê-lo, mas receio que tenha um assunto da maior urgência a tratar consigo. Poderia me conceder um instante da sua atenção? Prometo que serei breve.


Todos olharam prontamente para o Saci, que não sabia o que fazer.


- Meu senhor, estamos no meio de uma reunião importante, com ordens expressas de não sermos interrompidos. Não sei como o senhor chegou até aqui, mas tenho que lhe pedir que se retire.


- Eu insisto. – seu tom de voz era grave de dar medo - Não tomarei mais que dois minutos de seu tempo. Enquanto isso, as damas e cavalheiros aqui presentes podem aproveitar para saborear um pouco desse maravilhoso chá, que trago como uma cortesia – estalou os dedos e uma fumegante xícara da mais nobre porcelana apareceu em frente a cada um dos participantes.


O Saci pediu, então, que o inusitado visitante, o acompanhasse a uma sala reservada, onde pudessem conversar mais à vontade. Dois minutos mais tarde, retiram-se os dois da sala, cumprimentam-se discretamente, e o Leprechaun deixa a sala, despedindo-se dos demais presentes com um leve aceno de cabeça. As xícaras ficaram.


O Saci toma novamente a palavra, em meio ao falatório geral:


- Caros companheiros, eu lamento informar, mas um assunto familiar da máxima urgência me obriga a deixá-los neste momento. Nossa reunião terá que ser adiada por tempo indeterminado. Meus assessores entrarão em contato com vocês, marcando uma nova data para que demos andamento no que iniciamos hoje.


Os participantes, embora fizessem questão de demonstrar uma profunda insatisfação, suspiravam de alívio. Enfim poderiam deixar aquela sala e ir cuidar de suas vidas. Esperariam uma nova convocação, que nunca apareceu.


No fim daquele ano, a população assistiu, estarrecida, à aparição do Saci (sem cachimbo, em respeito ao politicamente correto) no mais novo filme do Harry Potter.


Com direito a fala e tudo.


Em inglês britânico.


E corretíssimo.

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