quinta-feira, 17 de dezembro de 2009

ÚLTIMAS PALAVRAS




O Homem é o único bicho que tem consciência da própria finitude.


Alguns críticos argumentam que esse seria, talvez (sempre o talvez) o mais grave defeito de fábrica da raça. Afinal de contas, trata-se da principal mola propulsora de todos os conflitos existenciais.


Outros, por sua vez, sustentam que o projeto foi idealizado e executado com perfeição, que os primeiros exemplares foram criados para viver eternamente, sem preocupações, mazelas ou doenças, habitando e povoando o jardim do Éden. Mas que, num determinado momento, e talvez (sempre talvez) cedo demais, uma falha humana (e, a rigor, falhar também seria um atributo exclusivo da raça humana, mas isso é assunto pra outra hora) haveria forçado a uma mudança nos planos.


De uma forma ou de outra, já temos em quem colocar a culpa, o que é, no mínimo, fonte de grande conforto.


Tinha um amigo que se chamava Nestor (e isso, por si só, já daria uma crônica), que, como a grande maioria de seus colegas humanos, passou a prestar atenção na consciência de sua própria finitude (em Português claro – preocupar-se com a morte) quando completou 50 anos de vida. É a idade clássica para esse tipo de reação, pois acredita-se que se tenha chegado à metade da vida, embora eu mesmo conheça bem poucas pessoas que tenham chegado ao dobro disso.


Além das preocupações de praxe, como a promessa de parar de fumar (que, acredita-se, por si só, já aumenta em 10% a expectativa de vida do indivíduo), comprar mais frutas, verduras e legumes, que invariavelmente estragavam na geladeira, mas enfeitavam bastante, matricular-se numa academia e tomar mais vinho (como os médicos divergiam entre um cálice e uma garrafa por dia, tomava os dois, só por precaução), meu amigo Nestor sempre se preocupou em demasia com a impressão que causava nas pessoas que estavam à sua volta. Como o físico não era lá essas coisas, cuidava com esmero do vocabulário, sempre com tiradas inteligentes e espirituosas, que a maioria dos circunstantes não entendia, mas procurava sorrir e concordar sempre.


Pois meu amigo Nestor fez questão de deixar claro, em todas as suas conversas com amigos, colegas de trabalho e interlocutores em geral, que gostaria que as suas últimas palavras, quando enfim expirasse, deveriam ser gravadas em sua sepultura. Explicava sempre, porque eram poucos os que compreendiam de imediato quando ele mencionava a palavra "epitáfio".


Como felizmente não é dado ao homem conhecer o momento exato de sua morte, salvo nos casos de suicídio, para não ser pego de surpresa, Nestor desenvolveu o hábito de soltar pérolas filosóficas em determinados horários do dia.


Variava sempre o repertório, ou, pelo menos, assim parecia, porque depois de alguns dias do que se esperava que fosse apenas uma nova mania passageira, mas que não passou, ninguém mais prestava muita atenção em suas elucubrações.


Alice, sua mulher, durante as primeiras semanas até fingia anotar seus "pensamentos". A empregada, por sua vez, apenas se benzia e dizia "ai, seu Nestor fala umas palavras que nem parecem coisa de Deus!". E se arrepiava inteira.


Seus horários fixos incluíam a hora de deitar e levantar, antes do almoço, a chegada no escritório, os inícios de reuniões e os happy hours, sem contar os momentos que ele julgava apropriados para atirar solenemente seus pseudo aforismos do tipo:


"O homem, ao acercar-se o ocaso de sua existência…"


"Anelemos por um novo lar num zimbório nimbado de estrelas."


"Estou pronto para o amplexo derradeiro ao pó de onde me criei."


"Que o orbe que nos abriga não se turbe ao olvido de meu ser."


E por aí seguia. Pitoresco, no começo. Chato, logo depois. E nos muitos anos que se seguiram, tornou-se insuportável a mania de filosofar do Nestor, até chegar a um ponto em que quase nada do que ele dizia fazia o menor sentido. E ele apenas sorria, com um ar de despretensiosa superioridade.


Foram milhares de frases, algumas até inteligíveis, e, na manhã em que o braço adormeceu, o ar começou a faltar e uma dor intensa apossou-se de seu velho corpo, com os sinais indubitáveis de um infarto fulminante, sua mulher entrou no quarto, assustada com os grunhidos e deparou-se com o marido nos estertores da morte. Com a cara roxa, o olhar vidrado e a boca escancarada, conseguiu ainda pronunciar três palavrinhas. E expirou.


Dona Alice, ao encomendar a lápide, acabou por escolher distraidamente uma de suas frases mais recorrentes (sim, todos notavam que ele repetia sistematicamente as frases que dizia).


Porque suas últimas palavras, de verdade, não dava pra gravar na sepultura.


Nem pra repetir aqui…

3 comentários:

  1. Olá Ricardo,
    Talvez seja or isso que o ocidental tem tanto medo da morte.
    Penso que essa transcendência deveria ser comemorada com toda a pompa. mas sabe come é....

    Bom já no apagar da luzes de um ciclo que se encerra quero desejar-te ondas gigantescas de Alegrias e muitas realizações para o ano de 2010.

    Forte abraço para o amigo,

    Hod.

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  2. Olá, Ricardo,
    Você tem um jeito muito especial de escrever. Suas palavras dão graça e vida até quando o assunto é 'morte'...
    Encerramos este mês o curso "A crônica na vida do professor e na sala de aula" e você fez parte dele... com algumas crônicas, com seu blog. Além de mim, conquistou muitos outros 'fãs'.
    Parabéns! Seus "arroubos literários" são D+++!!!

    Luzia Salmaso

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  3. Aeee Ricardo...!!

    Se o esperado não aconteceu, continuamos com fé colocando a Vida para Rodar. Se aconteceu comemoramos com a sonoridade e muita alegria..
    Tim..Tim..
    AGora é pular as ondinhas e correr para o abraço em 2010....

    Alôha com infinitas bençãos!!!

    Forte abraço,

    Hod.

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