segunda-feira, 7 de dezembro de 2009

O GARANHÃO DAS ESTRELAS





Naquele dia ele acordou muito mais sobressaltado que de praxe. E o que é pior, vários minutos antes de tocar o despertador. Ficou remexendo-se na cama, resmungando alguma coisa ininteligível, que a mulher preferiu fingir que não escutava, pra ver se ele conciliava o sono novamente, o que não aconteceu.



Saiu de casa sem tomar café, bem mais cedo que o habitual. Não revirou o jornal, como sempre fazia.



Até o porteiro do edifício que abrigava a imobiliária onde trabalhava estranhou que ele, sempre atrasado, estivesse chegando tão cedo:



- Bom dia, "Seu" Noronha. Caiu da cama?! E arreganhou os dentes num sorriso que, àquela hora da manhã, ofendia mais que xingamento à mãe. Ele respondeu com um grunhido. Não podia perder tempo; precisava ser o primeiro a chegar ao escritório.



Quando a recepcionista entrou, encontrou-o com as duas mãos na cabeça e o olhar confuso, tentando descobrir como ligar a máquina de café. Cumprimentou-o polidamente, nunca haviam trocado mais que duas palavras, e apertou o botão vermelho que se encontrava bem à sua frente, com o que a máquina pareceu tomar vida e resfolegar aquele inconfundível aroma de café que aos poucos foi inundando o amplo escritório.



Ele respirou fundo, como tentando absorver a cafeína daquele cheiro, para organizar melhor as idéias. E só então se lembrou de perguntar:



- Dona Soraia, a senhora por acaso sabe a que horas chega o Sandoval?



- Ele costuma chegar religiosamente às oito em ponto. Faltam quatro minutos.



Parecia uma eternidade. Mas não havia alternativa, senão esperar. Serviu-se de uma xícara de café e ficou andando de um lado para o outro, esperando que o Sandoval aparecesse com seu indefectível jornal debaixo do braço e sua temerária gravata estampada.



Às oito em ponto tocou a campainha anunciando a chegada do elevador. Pela porta de vidro ele pôde ver o Sandoval, sempre com as mãos cheias, caminhando apressadamente em direção à sua sala, não sem antes desejar um sonoro "bom dia", com sua voz de barítono, a Dona Soraia, que já ocupava seu posto na recepção.



- Sandoval, preciso falar com você! É urgente!



- Noronha?! O que houve?! Caiu da cama?!



Ele nem ouviu o gracejo. Foi empurrando o Sandoval em direção à sua sala, enquanto se certificava de que não estava chamando atenção demais. Havia pouca gente pelos corredores àquela hora.



Entraram, fechou a porta, passou a chave, respirou fundo, tentando recobrar o fôlego. Seus olhos pareciam querer saltar das órbitas.



- Meu Deus! O que houve?! Aconteceu alguma coisa? Está tudo bem com a Gracinha? – Eram cunhados, o que sempre servia de explicação para a excessiva tolerância do Sandoval (Doutor Miranda, como o chamavam os demais funcionários) para com os atrasos e trapalhadas do Noronha (que todos chamavam de Noronha, mesmo. Pelos menos na sua presença.)



- Está tudo bem com a Gracinha, com o Caio e com a Gisela, também. E com o Lex (era o cachorro, numa bem humorada homenagem ao temível vilão de Gotham City, pela total ausência de pêlos, embora não fizesse mal a uma mosca), antes que me pergunte. A coisa é séria. Esta noite eu tive uma revelação e preciso contá-la pra você. Primeiríssima mão.



- Uma o quê?! – Sandoval começava a se assustar. Embora o Noronha fosse sempre um pouco enfático demais em tudo, aqueles olhos de espanto pareciam exagerados. Até mesmo pra ele.



- Uma premonição!...



- Ora, tenha a santa paciência! Você então me chega aqui todo esbaforido pra me contar um pesadelo que teve?! Sugiro que procure o Dr. Souza, meu analista. Além de ele ser muito mais indicado pra esse tipo de conversa, estou com a agenda lotada agora pela manhã. Sinto muito.



- Me escuta, Sandoval. Não foi um sonho, posso te garantir. Eu estava deitado, é verdade, mas acordei com meu celular tocando. Um toque diferente, uma música que eu nunca havia ouvido antes, tipo aquelas que anunciam uma desgraça em filme de suspense.



- Hum… - Sandoval sabia que ele não ia lhe dar sossego enquanto não dissesse o que tinha pra dizer. Passaria o dia inteiro inventando pretextos para entrar em sua sala, interfornar, esbarrar pelo corredor. Melhor acabar com aquilo logo.



- Atendi depressa, pra não acordar a Gracinha. Uma voz feminina meio rouca, muito sexy, foi logo falando: "Salve, nobre Gilson, futuro patriarca de Síron!" (Ele detestava o primeiro nome. Às vezes chegava mesmo a esquecer que tivesse um. Mas naquela voz, no meio da madrugada, lhe soou como música.) Eu soltei um palavrão, disse que aquilo não era hora de estar passando trote em ninguém e já ia desligando o telefone, quando uma outra voz feminina, ainda mais sexy que a primeira, me impediu: "Temos uma mensagem da maior importância para você."



Naquele instante, meu telefone começou a projetar uma imagem, como se fosse uma televisão em 3D, e eu pude então ver as duas mulheres que conversavam comigo. Imagina a Sophia Loren e a Marilyn ligando pra você no meio da madrugada. Imaginou?! Passou longe: elas dão de dez a zero. Foi aí que eu tive a certeza de que não era um trote.



Noronha contou detalhadamente a conversa que tivera com as duas estranhas interlocutoras, que estavam a bordo de uma espaçonave intergaláctica cujo nome ele não conseguira entender, de como elas o conduziram por um tour pela nave, onde só se viam mulheres dos mais variados tipos, todas aparentando idade entre os vinte e trinta anos e dignas de fazer inveja a um desfile da Victoria's Secret.



Ao fim do tour, a que parecia ser a comandante da nave lhe confidenciou o motivo da inusitada comunicação:



- Nosso planeta sofreu uma terrível catástrofe, com a disseminação de um vírus letal que dizimou todos os espécimes masculinos de nossa raça. Tentamos por vários anos desenvolver métodos assexuados de reprodução, com os quais pudéssemos assegurar a continuidade de nossa espécie, mas sem sucesso. Após uma extensa busca por vários quadrantes do universo, nossas cientistas chegaram à conclusão que apenas os homens da Terra portariam características compatíveis com as nossas, para que obtivéssemos êxito em nossa empreitada reprodutiva. E, analisando os códigos genéticos dos homens de sua espécie, constatamos que VOCÊ seria a pessoa mais indicada para liderar essa importante jornada de repovoamento de nosso planeta. É por isso que viemos, em nome de todas as sironianas, rogar que se junte a nós, em nome da salvação da nossa espécie. E como somos milhões, ávidas pela oportunidade de nos reproduzirmos, sugerimos que reúna, entre aqueles que achar mais aptos à tarefa, doze espécimes masculinos do seu planeta, para que façam parte de sua equipe.



Noronha, com os olhos repletos de lágrimas e a gola do pijama empapada em baba, não conseguia articular palavra. Apenas assentia com a cabeça repetidamente, como hipnotizado pela inusitada proposta. Ou pelos magníficos seios da Marilyn que lhe falava.



- Aceitaremos seu silêncio como consentimento. Existem, porém, alguns riscos que essa operação pode acarretar, e é nosso dever informar-lhe. Nossa espaçonave emite uma grande quantidade de radiação, e não estamos bem certas do que isso pode acarretar ao seu planeta. Na pior das hipóteses, uma reação em cadeia com o nitrogênio presente em sua atmosfera pode desencadear um cataclismo de proporções jamais vistas, capaz de aniquilar completamente a vida na Terra. Precisamos saber se, mesmo ciente de tais riscos, você estaria disposto a colaborar conosco.



Ele permanecia com os olhos vidrados, balançando a cabeça afirmativamente.



A comandante Marilyn deu um gritinho de contentamento, seguido de um largo sorriso e lhe informou que ele, juntamente com os doze escolhidos, deveriam estar reunidos dentro de quatro dias, naquele mesmo horário, a uma altitude de 24 metros do nível do mar, formando um círculo, de mãos dadas. Sem bagagem. Elas cuidariam de tudo.



A vontade do Sandoval, ao ouvir aquele monte de sandices, era atirar o Noronha pela janela do sétimo andar, onde estavam. Mas ele sabia que algo sério acontecera. O Noronha, por mais que ele soubesse não ser muito certo da cabeça, não era de fazer brincadeiras daquele tipo ou qualquer outro. Era meio doido, mas sério. Por via das dúvidas, deu-lhe um bilhete e mandou que o entregasse ao Dr. Souza ainda naquela manhã.



Horas depois o Noronha mete a cara pela porta, visivelmente mais calmo e composto.



- E então?! Como foi a conversa com o Dr. Souza?



- Ele topou! – e dá um sorriso triunfal. – Agora só faltam onze.



Em poucos minutos estava ao telefone com o psiquiatra. Conseguiu fazer com que a secretária interrompesse a sessão com um dependente químico em tratamento, pois era um dos pacientes mais antigos (e ricos) e estava em uma emergência. Doutor Souza foi paciente e didático ao telefone, ao explicar a sua decisão:



- Meu caro Miranda, passei seu cunhado por todos os crivos conhecidos na moderna Psiquiatria e posso lhe assegurar que mentindo ele não estava. O que ele me narrou foi uma experiência verdadeira. É difícil precisar se a mesma partiu de seu consciente ou inconsciente, mas achei sensato conceder-lhe o benefício da dúvida. E como ele foi extremamente amável ao me convidar para fazer parte da sua importante missão, achei que seria de muito mau gosto recusar.



- Eu não acredito que você tenha embarcado com ele nesse delírio. Francamente!...



- Ora, Miranda! Reflita comigo: caso a teoria dele esteja correta, em quatro dias a vida em nosso planeta estará aniquilada. Aceitar o convite seria a única maneira de sobreviver a essa iminente catástrofe.



- Mas, e se isso for apenas um delírio da mente daquele louco?



- Nesse caso, podemos contar com um "depois" pra resolver isso. Pense bem. Você foi a primeira pessoa que ele procurou para fazer parte da missão. E ao rechaçá-lo, ele entendeu como uma recusa. Eu sugiro que o procure e desfaça esse mal entendido. A propósito, foi bom você ligar: estou cancelando a sua consulta desta semana. Vamos nos ver em quatro dias, mesmo…



E desligou.



Parecia loucura. Mas fazia sentido. Chamou Noronha à sua sala e tentou agir com naturalidade:



- E então, meu caro?! Quantos já somos até o momento?



- Quer dizer que você resolveu aceitar o meu convite?



- Sei não, cunhado. Ainda estou achando isso tudo muito esquisito. Mas conversei com o Dr. Souza e ele foi bastante convincente. Mas preciso te fazer uma pergunta da maior importância, antes de tomar essa decisão.



- Manda!



- Nesse seu tour pela nave você viu alguma Pamela Anderson?



- Deixa ver… sim, me lembro de ter visto pelo menos uma. Na enfermaria.



- Estava doente?



- Não! Estava aferindo a pressão da Angelina.



- Uuuuuiii!!! Me deu até uma pontada no coração. Meu caro, Síron precisa de nós. Estou contigo nessa missão.



Os dias que se seguiram foram permeados de cochichos, piscadelas e reuniões em segredo. O time estava formado e altamente motivado. O sigilo era absoluto, para que não se espalhasse um pânico desnecessário entre as esposas e os familiares. Afinal de contas, havia a chance de o nosso nitrogênio resistir à radiação da nave.



No dia e hora aprazados, os doze encontraram-se no terraço do edifício Lopes Miranda, sede da imobiliária. Resolveram que o porteiro deveria estar entre eles, para, no caso de o planeta sobreviver à aproximação da nave, não correrem o risco de deixar testemunhas que pudessem levar a pistas plausíveis. Todos sabiam do que as mulheres eram capazes.



Cumprimentaram-se discretamente, com um discreto sorriso no rosto e aquele brilho nos olhos, como crianças em torno da árvore de Natal.



Despiram-se em silêncio, amontoando as roupas ao pé da caixa d'água, e foram se reunindo no centro do terraço, formando um grande círculo, de mãos dadas, no meio do qual estava o celular do Noronha.



Ele tinha os olhos úmidos, novamente. Estava convencido de que o momento era o mais importante de sua vida. Mas não conseguia pensar em nada que pudesse improvisar para um breve discurso, então começou a repetir, como se entoasse um mantra: "Síron, Síron", no que foi imediatamente acompanhado pelos colegas.



Os minutos que se passaram pareceram uma eternidade. A cantilena foi aumentando gradualmente, até que todos suspenderam a respiração, quando perceberam que um ruído ensurdecedor, seguido de uma ofuscante luz e uma ventania que quase os desequilibrava foi se aproximando do terraço. Era o êxtase. Noronha sentia como se levitasse. Não cabia em si de contentamento. Desde criança sempre tivera a certeza plena de que seus talentos suplantariam os limites deste nosso pequeno planeta.



Foram instantes de júbilo extremo, interrompido apenas quando a voz chegou aos seus ouvidos:



- Aqui é a polícia. Vocês estão cercados. Fiquem onde estão.



Quase podiam tocar o helicóptero, que só não aterrissava porque o terraço era pequeno demais. Nesse instante a porta do terraço se abria e dezenas de policiais, liderados por Dona Gracinha e Mirthes Miranda, cercavam o perímetro.



Ninguém tentou fugir. Os integrantes do círculo apenas baixaram a cabeças, derrotados, e soltaram-se as mãos, para que pudessem cobrir as desguarnecidas partes baixas.



Por sorte conseguiram ser ouvidos pelo comandante sem a presença das mulheres. Pensariam depois no que diriam a elas. Mas era muito mais confortável explicar a um homem o que estavam fazendo ali, àquela hora, e naquelas condições.



O tenente quase chorou, ao ver a expressão de desolamento naqueles homens de meia idade. Mas manteve-se firme e repreendeu a cada um verbalmente de forma dura. Decidiu que não eram merecedores de inquérito, processo, nada dessas formalidades penais. A justiça andava ocupada demais com casos muito mais graves. E cada um já recebera um castigo muito mais grave do que merecia. Isso sem contar o que lhes esperava em casa.



O sol nasceu mais uma vez, para seis bilhões de pessoas em nosso pequenino planeta.



Às oito em ponto, Sandoval Miranda descia do elevador, rumo à sua sala, cumprimentando Dona Soraia com um sonoro "bom dia" de barítono. O porteiro estava impecável, disfarçando o sono, recebendo os funcionários e visitantes. Dr. Souza atendia seus pacientes em seu consultório. E todos os demais tocavam em silêncio suas vidas, decididos a jamais tocarem no assunto novamente.



Com exceção do Noronha, que arrumava as malas para assumir a gerência da filial de Botucatu.

Nenhum comentário:

Postar um comentário