segunda-feira, 3 de agosto de 2009

TRÊS LETRINHAS



Estava atrasado, como sempre. Sempre com aquela sensação de que os dias estavam ficando curtos demais para todos os seus compromissos. De nada adiantava culpar a secretária, mas ele o fazia assim mesmo. É grande a sensação de conforto que nos causa o simples fato de ter em quem colocar a culpa. Anotou mentalmente esse pensamento. Talvez fosse interessante discutir com o terapeuta. Talvez não.

Por mais que o edifício de consultórios estivesse vazio naquele horário, o elevador demorava a chegar. Chegou, nono andar. Desceu, procurou a placa de seu psiquiatra (estava completando dois anos de terapia e nunca conseguia ter certeza se devia descer do elevador para a direita ou para a esquerda), dobrou à esquerda e partiu com passos curtos e rápidos.

A meio caminho do 918, um homem impecavelmente vestido abria a porta de um dos consultórios. Embaralhava-se com o imenso molho de chaves, a pasta executiva e o casaco. Ele achou aquilo engraçado, embora não estivesse com tempo de achar nada engraçado.

Embora atabalhoadíssimo com tudo que tinha nas mãos, o estranho dirigiu-lhe a palavra amigavelmente:

- Boa noite! Consultório novo, acabo de me mudar e ainda não me habituei a esse monte de chaves. – e um sorriso franco e aberto, como se se conhecessem há muito tempo.

Respondeu apressado, tentando devolver um sorriso que saiu bastante amarelado, olhou de soslaio para a plaquinha na entrada do consultório novo: Roger Ignacyo Ventura, p.h.D, Numerólogo. Achou estranho, mas estava atrasadíssimo para sua consulta.

Passou a sessão inteira com uma estranha e divertida curiosidade sobre o encontro que tivera no corredor. Jamais confessaria a ninguém, muito menos para o seu terapeuta (o que pensariam dele?!), mas nutria um certo interesse pelos assuntos ditos esotéricos. E ali estava, a apenas 15 passos de distância, um numerólogo. Tinha que ser mais que mera coincidência.

Ao sair de sua consulta, notou que o 912 ainda estava com a porta aberta, apesar de já passar das nove. Atrasou o passo para espiar discretamente como seria um consultório de numerologia num dos endereços mais caros da cidade e quiçá do país. Parou por um instante, o suficiente para o numerólogo, que parecia ocupadíssimo arrumando muitos livros em uma estante de madeira escura virar-se e fazer o convite:

- Olá! Por que não entra e me acompanha num chá? Acabei de preparar.
Hesitou por um instante. Era tarde. Mas não tinha mais nenhum compromisso para aquela quarta-feira. Apenas retornar para o recesso de seu lar. O que, do jeito que as coisas andavam, sempre podia esperar mais um pouco. “Com licença!” e entrou, tentando apreender do ambiente o máximo que podia sem demonstrar demasiada curiosidade.
Arriscou:

- Vejo que ainda está com as mãos ocupadas. Doutor Roger, não é?

- Rogê, francês. E, por favor, deixe de lado o doutor.

- Muito prazer. Demétrio. Não queria incomodar, sei como dá trabalho mudar…

- Não é incômodo nenhum, meu amigo. Mudar dá, sim, muito trabalho. Mas é sempre um dos trabalhos mais gratificantes que um homem pode encontrar em toda a sua existência. Eu, por exemplo…

E discorreu, em breves minutos, sobre toda a sua trajetória, começando pela educação nos mais conceituados colégios do país, pela carreira promissora de financista, chegando a ocupar a cadeira de comando em um dos maiores bancos do país, de seus insucessos conjugais, do fracasso familiar, de como a carreira entrou em franco declínio, até atingir o fundo do poço, da viagem à Índia, dos encontros com os mais iluminados gurus e de como o conhecimento místico modificara sua vida, permitindo-lhe alavancar uma nova carreira. E ali estava ele, agora, aceitando um novo desafio e lançando-se na carreira de numerólogo.
Demétrio estava assombrado. Desde o primeiro instante tivera a impressão de já haver visto aquele rosto em algum lugar, e agora tudo se aclarava: quem estava à sua frente era ninguém mais ninguém menos do que Rogério Venturi, o mais jovem e promissor financista do país há apenas alguns anos, que desparecera misteriosamente sem deixar rastro, após uma série de denúncias nunca confirmadas de escândalos de todo tipo.

Ali estava ele, agora, à sua frente, exibindo um sorriso de vencedor e oferecendo-se para uma consulta rápida e gratuita com seu nome.

- Por que não?! – pelo menos teria uma história interessante para contar aos colegas do banco no dia seguinte.

Ficou olhando enquanto Rogério, ou melhor, Roger, rabiscava umas letras e números numa folha de papel, fazia contas, até que seu rosto se iluminou:

- Meu caro Demétrio, aqui estão as três letrinhas que mudarão sua vida para sempre. A partir deste momento, você se chama Demetryus.

Ele pegou o papel, fingiu interesse ao examinar os resultados, dobrou, colocou no bolso do paletó, agradeceu e partiu. Estava ficando tarde pra voltar pra casa. Até mesmo para ele.

Dirigiu para casa tentando pensar em outra coisa, mas aquele insólito encontro martelava em sua cabeça. Seu lado meio esotérico, que jazia quase esquecido atrás de uma couraça de respeitabilidade e ceticismo, teimava em lhe convencer de que havia algum motivo oculto para que seus caminhos se cruzassem naquela noite.

Nos dias que seguiram tentou não dar importância ao assunto. Não, ele era Demétrio Dias Monteiro, respeitado analista financeiro, com doutorado em Economia em Harvard e um nome a zelar. Mas o assunto não se permitia jogar para escanteio assim tão facilmente, e lhe martelava as idéias tão logo surgia a mais ínfima brecha. Demetryus, Demetryus… por que não?!

Um dia resolveu ceder à tentação e assinar Demetryus em um e-mail que encaminhava a um colega de escritório. Tinha certeza de que ele nem notaria. E tiraria aquela cisma da cabeça de uma vez por todas.

Sentiu-se estranhamente bem ao fazê-lo. E como não causasse nenhum impacto nos destinatários, continuou a fazê-lo, aumentando a cada dia a freqüência. E sentindo-se cada vez melhor. Chegou a pensar em estampar o “novo nome” em seu cartão de visitas, mas deixou para fazê-lo quando acabassem os que ainda tinha na gaveta. Com isso ia se habituando à idéia.

Um dia desapareceu misteriosamente.

Depois de uma semana, sua mulher ligou pra empresa, procurando saber seu paradeiro. Estava começando a demorar demais pra voltar pra casa. Até mesmo pra ele. Mas foi informada de que Demétrio não comparecia ao seu escritório há muitos dias. Não, não estava em nenhuma viagem de negócios pela empresa e que por favor, se tivesse contato com ele solicitasse que procurasse a gerência geral com urgência, porque sua presença era fundamental no fechamento de alguns contratos que ficaram pela metade.

A esposa tentou relaxar, atribuir aquele sumiço à crise de meia idade. Seqüestro não era, afinal de contas ninguém a procurara ou à empresa para o pedido de resgate. Aquele canalha estava aprontando mais uma e desta vez passara dos limites. Era isso. Mas ele lhe pagaria. Caro.

Passaram-se meses sem notícias. Ela já nem se lembrava mais de que um dia tivera um marido. Não era difícil esquecer aquele bastardo. Apenas contava os minutos para que pudesse declará-lo ausente, presumivelmente morto ou o que quer que fosse, pra meter a mão no dinheiro do seguro e tocar a vida.

Um belo dia, enquanto tentava fugir do tráfego passando por uma rua de menor movimento onde nunca estivera, deparou-se com um homem entrando em um prédio antigo e decadente e teve um insight: reconheceria aquele andar mesmo a quilômetros distância. Era ele!

Conseguiu com dificuldade uma vaga para estacionar e entrou correndo no prédio, uma galeria estreita e mal iluminada, com muitas lojas vazias. Ao fundo, um letreiro em neon rosa berrava: Demetryus Coiffeur. Não podia ser. Mas era coincidência demais.

Entrou pela porta de vidro ornamentada com todo tipo de penduricalhos e estacou diante da imagem que se lhe apresentava: seu marido com os cabelos bem mais longos, usando óculos com armação vermelha, enfiado em uma camisa florida de javanesa, bermuda na altura dos tornozelos e um chinelão de couro nos pés, manuseando habilmente um secador de cabelos e uma escova, enquanto conversava alegremente com uma senhora que se submetia aos seus cuidados. Pareciam conhecer-se há anos.

Ela recapitulou mentalmente todos os impropérios que pensara lhe atirar quando o encontrasse. De repente surpreendeu-se com a riqueza que seu vocabulário chulo adquirira. Respirou fundo, contou até 10 algumas vezes e chamou em voz baixa:

- Demétrio?! É você?!

Ele parecia não ouvir. Ela arriscou mais alto:

- Demétrio?! Demétrio?! Que brincadeira é essa?! Sou eu, sua esposa, Amanda.

Ela foi aumentando o tom de voz, chegando a berrar. Em vão. Ele permanecia alheio a tudo o que estava acontecendo.

Não era mais ele.

Nenhum comentário:

Postar um comentário