A RAPOSA E O POLITICAMENTE CORRETO
(Adaptado do livro Arroubos Literários - Crônicas Cotidianas)
Só muito tempo depois, diante do Excelentíssimo Senhor
Juiz, o Sr. Raposa (era macho, diga-se
de passagem, é importante frisar, e não cometeremos aqui o deslize de chamá-lo
raposo, o que talvez soasse mais fácil ao entendimento, mas nem tudo que é de
fácil entendimento é verdadeiro, e vice-versa) continuava sem entender o que
estava fazendo ali.
PROMOTOR – O senhor está ciente das acusações que lhe
estão sendo feitas?
RAPOSA – Confesso aos senhores que não faço a menor
idéia do que está acontecendo nesta sala, nem dos fatos de que venho sendo
vitima nos últimos meses. É como se a minha vida se tivesse transformado, súbita
e abruptamente, num romance de Kafka.
PROMOTOR – Pois saiba que pesam sobre o senhor
acusações do inafiançável delito de discriminação por cor, o que fere os
princípios fundamentais da nossa magnífica Carta Magna. O que o senhor tem a
alegar em sua defesa? Culpado ou inocente?
RAPOSA – Senhor promotor, com todo respeito, devo
dizer-lhe que, se nem ao menos tinha consciência de estar sendo acusado de
delito de qualquer natureza, é óbvio que alegarei inocência diante de tão
execrável delito. E se me é permitido saber, gostaria mesmo de perguntar de
onde é que surgiu tão famigerada história envolvendo o meu nome.
PROMOTOR – dirige ao Juiz um olhar interrogativo.
JUIZ – assente com a cabeça e um leve encolhimento dos
ombros. Alguma coisa estava errada naquilo, ele não sabia em quem colocar a
culpa, mas com certeza não era dele.
PROMOTOR – Desculpe minha estupefação, mas ocorre que o
caso do qual o senhor é réu é de conhecimento público, havendo conquistado
espaço na mídia e, pode-se até dizer, se me permite usar o coloquial,
Excelência, na boca do povo…
RAPOSA – continua com ar de quem não está entendendo
patavina (se me permite o coloquial).
PROMOTOR (irritando-se) – Ora, senhor Raposa, não nos
teste a paciência, que o assunto é sério e todos temos mais o que fazer! Por
acaso não foi o senhor que proferiu a seguinte frase – e consulta no volumoso
processo, passando as páginas com alguma violência perfeitamente simulada –
aqui está: “As uvas estão verdes”?!
RAPOSA – Sim, eu me lembro de haver dito a frase.
PROMOTOR – Enfim estamos chegando a algum lugar. Que
conste nos autos, portanto, que o réu confessa haver proferido a frase de que é
acusado, como justificativa para não comer as uvas.
RAPOSA – Um momento, senhor Promotor. Eu disse que
proferi a frase, mas jamais disse que não comi as uvas.
Um longo “oohhhhhh” percorreu a sala de audiências,
seguido de intenso burburinho, obrigando o Senhor Juiz a pedir ordem no
recinto.
RAPOSA – Parece-me que está havendo uma grave distorção
dos fatos, invertendo-se, dessa forma, toda a interpretação da história. Eu
admito haver dito que as uvas estavam verdes, mas em momento algum tal
afirmação serviu de pretexto ou motivo para que eu não as comesse. Pelo
contrário, Senhor Promotor, Excelência: eu cheguei à conclusão de que as uvas
estavam verdes após haver degustado várias delas.
PROMOTOR – O que me parece, Excelência, é que o réu é
que pretende distorcer os fatos, a fim de conduzir a erro este Juízo.
JUIZ – Prossiga o réu em seu depoimento.
RAPOSA – Obrigado, Excelência! Como eu dizia, após
perceber que as uvas sabiam mal, e frise-se que fiz questão de provar várias
vezes, para eliminar completamente a mais remota possibilidade de um julgamento
apressado e parcial, após sentir a acidez e o amargor em minha língua, muito
mais para vinagre que para vinho, foi que senti-me no direito de emitir o
parecer que tão mal interpretado me parece haver sido.
PROMOTOR – Mas o senhor confessou haver dito que as
uvas estavam VERDES.
RAPOSA – Sim, e sustento.
PROMOTOR – Portanto, Excelência, o depoimento do réu em
nada afeta a tipificação do delito ou a sua responsabilidade e rogo-lhe que
prossigamos com o julgamento, que a pauta anda cheia e a imprensa aí está. O
réu disse que as uvas estavam verdes. Verde é cor. Comendo-as ou não, emitiu opinião
baseando-se na cor das mesmas. Está caracterizada a discriminação por cor e a
justiça precisa ser aplicada de forma exemplar.
RAPOSA – Senhor Promotor, eu gostaria de esclarecer que
em nenhum momento eu me referia à cor das uvas. Se alguém interpretou minhas
palavras dessa maneira, o fez por motivos próprios, aos quais sou e desejo
permanecer totalmente alheio. Encontrassem-se as referidas uvas em situação
oposta, e eu jamais diria tal coisa, independente da cor que apresentassem.
PROMOTOR (muito irritado) – E o senhor poderia ter a
bondade de nos explicar qual é o oposto de VERDES, senhor Raposa?!
RAPOSA – Maduras, Excelência...
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