O ICEBERG
A primeira coisa que se
notou foi uma placa. É sempre assim. Luzidia e bem na entrada da cidade. E
muitas outras, em diversos pontos do município, fomos descobrindo com o tempo.
E até hoje se encontram delas por aí, um pouco carcomidas pela maresia; mas
firmes, provando que é possível, sim, erigir obras públicas com qualidade e
durabilidade; claro que placa é obra pública, quem disse que não?! Dependendo
do caso, tem até licitação!...
Isso se deu num tempo em que
não tinha Google, muito mal enciclopédia na Biblioteca da escola, trancada a
sete chaves atrás de madeira sólida e vidro grosso; zelo da senhora diretora,
muito bem intencionada, prima, sogra ou cunhada de um sogro, cunhado ou primo
do excelentíssimo senhor prefeito, essa gente tem sempre umas famílias tão
extensas, pena caixão ter só seis alças. Pedra no meio do caminho tinha. Sempre
tem...
Deu um bafafá danado. É
sempre assim... E depois de uma semana corrigindo até o vigário, que não era
“ISSEBÉRGUI”, que a pronúncia correta era “AISSSIBÉRG”, o excelentíssimo
alcaide mandou pintar em letras garrafais, logo abaixo de ICEBERG, entre
parênteses “Pronuncia-se AISSSIBÉRG”, tudo com licitação, tribunal de contas,
ficou uma beleza.
Agora a cidade já podia se
orgulhar:
- Por ter aprendido uma palavra estrangeira.
- Por ter um prefeito de visão, ação, austeridade e empreendimento.
- Porque, dentro em muito breve, seria a primeira cidade DO BRASIL a ter o seu próprio iceberg.
Durante os meses seguintes,
não se falou de outra coisa: os benefícios do iceberg para o turismo, os
benefícios do iceberg para a saúde pública, os benefícios do iceberg para a
balança comercial, para os cabelos escovados, a pele, tantoscentos empregos
diretos, mais arrecadação, meio ambiente, ambiente inteiro; iceberg na
barbearia, na câmara, nas Escolas, na mídia, na matriz, na filial.
E todo cidadão que se
prezasse (tem a turma que torce contra... sempre tem...) tinha na ponta da
língua o mantra da revolução do iceberg e seu impacto positivo na vida do
cidadão de todas raças, credos e classes sociais; estufava o peito e corava de
orgulho a face ao entoá-lo aos quatro ventos e até a quem perguntasse; e muitos
números, não há como discutir com eles...
Passou o tempo, mas a
história não esfriou.
Expectativa na população.
Festa! Alegria! Alvíssaras!!!
A obra foi entregue no
prazo, à risca (quem disse que iceberg não é obra pública?! É claro que é! Tem
licitação e tudo!), como manda a responsabilidade fiscal: quinze dias após a
reeleição do prefeito. Eu mencionei que era ano de eleição?! Devo ter
esquecido... Sempre é...
Festa nas ruas! Multidão no
porto, sentada nas confortabilíssimas arquibancadas montadas especificamente
para a ocasião, mais uma obra pública, com licitações e tudo! Alegria! Veio um
assessor do vice-governador, mais um secretário ou dois. O prefeito tirou
retrato com todo mundo, sorriu, abraçou, beijou criancinhas, depois passou a
mão no microfone e deitou uma falação de umas duas horas, debaixo de um sol de
38 graus. Tocou a banda da cidade, o Hino Nacional e mais uns dois e chegou o
grande momento:
FOOOOOOOOOOOOOOOOOOM!!!
Apitou o navio, avisando que
estava adentrando a baía. E foi apontando a cara. Nem era tão grande assim,
prum iceberg. Atrás dele, uma corda imensa, grossa, vinha boiando, arrastada,
formando um imenso laço; muito bem amarrado... mas vazio.
E o povo se acabando de
aplaudir.
Meses depois é que foram
explicar: tava lá no contrato, em letrinhas bem miúdas, que o iceberg poderia
derreter ao contato com as altas temperaturas do hemisfério sul; que o prefeito
assinou; mas foi justamente no dia em que ele deixou os óculos no bolso do
outro paletó...
Então tá...
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