sábado, 22 de março de 2014

O ICEBERG - FILOSOFIA DE BUTIQUIM - 22 DE MARÇO DE 2014


O ICEBERG


A primeira coisa que se notou foi uma placa. É sempre assim. Luzidia e bem na entrada da cidade. E muitas outras, em diversos pontos do município, fomos descobrindo com o tempo. E até hoje se encontram delas por aí, um pouco carcomidas pela maresia; mas firmes, provando que é possível, sim, erigir obras públicas com qualidade e durabilidade; claro que placa é obra pública, quem disse que não?! Dependendo do caso, tem até licitação!...
Isso se deu num tempo em que não tinha Google, muito mal enciclopédia na Biblioteca da escola, trancada a sete chaves atrás de madeira sólida e vidro grosso; zelo da senhora diretora, muito bem intencionada, prima, sogra ou cunhada de um sogro, cunhado ou primo do excelentíssimo senhor prefeito, essa gente tem sempre umas famílias tão extensas, pena caixão ter só seis alças. Pedra no meio do caminho tinha. Sempre tem...

Deu um bafafá danado. É sempre assim... E depois de uma semana corrigindo até o vigário, que não era “ISSEBÉRGUI”, que a pronúncia correta era “AISSSIBÉRG”, o excelentíssimo alcaide mandou pintar em letras garrafais, logo abaixo de ICEBERG, entre parênteses “Pronuncia-se AISSSIBÉRG”, tudo com licitação, tribunal de contas, ficou uma beleza.

Agora a cidade já podia se orgulhar:
  • Por ter aprendido uma palavra estrangeira.
  • Por ter um prefeito de visão, ação, austeridade e empreendimento.
  • Porque, dentro em muito breve, seria a primeira cidade DO BRASIL a ter o seu próprio iceberg.

Durante os meses seguintes, não se falou de outra coisa: os benefícios do iceberg para o turismo, os benefícios do iceberg para a saúde pública, os benefícios do iceberg para a balança comercial, para os cabelos escovados, a pele, tantoscentos empregos diretos, mais arrecadação, meio ambiente, ambiente inteiro; iceberg na barbearia, na câmara, nas Escolas, na mídia, na matriz, na filial.

E todo cidadão que se prezasse (tem a turma que torce contra... sempre tem...) tinha na ponta da língua o mantra da revolução do iceberg e seu impacto positivo na vida do cidadão de todas raças, credos e classes sociais; estufava o peito e corava de orgulho a face ao entoá-lo aos quatro ventos e até a quem perguntasse; e muitos números, não há como discutir com eles...

Passou o tempo, mas a história não esfriou.

Expectativa na população. Festa! Alegria! Alvíssaras!!!

A obra foi entregue no prazo, à risca (quem disse que iceberg não é obra pública?! É claro que é! Tem licitação e tudo!), como manda a responsabilidade fiscal: quinze dias após a reeleição do prefeito. Eu mencionei que era ano de eleição?! Devo ter esquecido... Sempre é...

Festa nas ruas! Multidão no porto, sentada nas confortabilíssimas arquibancadas montadas especificamente para a ocasião, mais uma obra pública, com licitações e tudo! Alegria! Veio um assessor do vice-governador, mais um secretário ou dois. O prefeito tirou retrato com todo mundo, sorriu, abraçou, beijou criancinhas, depois passou a mão no microfone e deitou uma falação de umas duas horas, debaixo de um sol de 38 graus. Tocou a banda da cidade, o Hino Nacional e mais uns dois e chegou o grande momento:

FOOOOOOOOOOOOOOOOOOM!!!

Apitou o navio, avisando que estava adentrando a baía. E foi apontando a cara. Nem era tão grande assim, prum iceberg. Atrás dele, uma corda imensa, grossa, vinha boiando, arrastada, formando um imenso laço; muito bem amarrado... mas vazio.

E o povo se acabando de aplaudir.

Meses depois é que foram explicar: tava lá no contrato, em letrinhas bem miúdas, que o iceberg poderia derreter ao contato com as altas temperaturas do hemisfério sul; que o prefeito assinou; mas foi justamente no dia em que ele deixou os óculos no bolso do outro paletó...


Então tá...


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