quinta-feira, 21 de maio de 2009

OPINIÕES

Típica manhã de quinta-feira.

O executivo levanta apressado, depois de uma noite mal dormida, faz sua toalete matinal, veste-se com seu melhor terno, que está ali, passadinho, impecável... repassa na mesa do café, um lauto banquete, diga-se passagem, as apresentações, relatórios e contratos que precisa levar consigo na viagem, para os negócios multimilionários que vem tentando fechar há meses com aquela grande multinacional... despede-se displicentemente da mulher, que lhe deseja boa viagem sem levantar-se, e agora já perscruta com avidez as manchetes do caderno de economia do seu jornal.

Na garagem, o motorista o aguarda com o motor ligado, climatização perfeita, os assentos de couro cheirando a novos, o carro brilha como uma jóia.

- Bom dia, doutor! Como vai? – tentando ser amável, tantos anos faz que serve aquela família que se sente já no direito de considerar-se quase um sub-membro.
- Bom dia, Clóvis! – seco como um autômato, tem problemas demais pra resolver, cifras demais ocupando seu cérebro, para permitir-se um tom sequer de gentileza a voz. O doutor é assim mesmo, pensa o Clóvis, mas paga bem, em dia, carteira assinada, e ainda tenho o privilégio de dirigir esse carrão que nem passar marcha precisa, usando essa indumentária de bacana que já seduziu muitas incautas no bailão das sextas-feiras do gaudério, que não nos escute a patroa. – Aeroporto, terminal 2, embarques domésticos! (Brasília o seu destino). E estamos atrasados – era a ordem e a ameaça, que quase sempre andavam juntas.
- Sim senhor, doutor!

O executivo agora está absorto em seu jornal, praguejando em silêncio contra a queda do dólar, da bolsa, alta do petróleo, etc, etc... que são problemas demais pra resolver, índices demais pra analisar... tudo demais.

O automóvel deixa as ruas internas do condomínio fechado horizontal, Clóvis apenas acena com um quê de indiferença para os cinco guardas da guarita de segurança e, ganhando a avenida, parte como um bólido silencioso e reluzente, ganhando velocidade rumo ao destino pretendido. Não estamos assim tão próximos e o “estamos atrasados” do doutor, embora soasse impassível em sua voz, tinha um peso que Clóvis conhecia bem... significava: “Esqueça as leis de trânsito e voe. Sinal vermelho? Sinal verde? Vai saber... és daltônico, não percebes a diferença.”

Durante todo o percurso, silêncio absoluto... nem o motor se atreve a fazer barulho, que o doutor está concentrado no seu jornal, mas agora já arrisca algumas olhadelas pela janela blindada, em busca de pequenos lampejos do mundo lá fora: o tempo, o trânsito, onde estamos.

Quando o automóvel deixa a autopista e toma a saída que leva ao aeroporto o doutor tem a visão. Perdoem-me o cacófato... não era nenhum aviso grande, mas a visão que, se não o conhecêssemos bem, diríamos que lhe enternecera... mas longe disso, o que lhe suscitara a visão daquele homem franzino, sandálias de dedo, caminhando à beira do asfalto, olhos postos no chão, cigarrinho de palha na boca e nas mãos um caniço, um puçá e um balde em frangalhos, foi um misto de revolta e inveja.

Disse consigo mesmo: (esclarecemos, que o motorista estava deveras ocupado em fazer-lhe chegar ao seu destino a tempo de embarcar)

– Isso é que é vida!!! Imagine só! Plena quinta-feira, oito e meia da manhã, o mundo desabando, ministros caindo, a bolsa despencando, o câmbio flutuando, o petróleo subindo, CPI disso, CPI daquilo, crise pra todo lado e vai lá saber o que o Bin Laden ta tramando, e o sujeito me tem a coragem de sair pra pescar. Lá vai ele, no seu passo lento, como se nada mais lhe importasse no mundo do que o prazer de se sentar à beira de um rio (havia um rio nas cercanias) e ficar cismando sabe lá Deus o quê, à espera de que os peixes venham morder a sua isca traiçoeira e sejam fisgados para o seu destino fatal. E eu aqui, nessa correria, pronto pra enfrentar um exército de executivos engravatados, em busca de fechar um negócio milionário, preocupado em pagar meus impostos, produzir para que esse país possa crescer. Um sujeito assim se preocupa com o quê?! Sim senhor, isso é que é vida...

Manhã típica de quinta-feira.

Zé levanta-se em seu barraco, depois de uma noite mal dormida. O corpo todo dói do colchão duro de capim que conseguiu salvar da última enchente (passa um rio ali pelas cercanias). Maria já está de pé, num canto do cômodo único, preparando uma água rala que ela teima em chamar de café, para que o marido não saia sem pelo menos agasalhar o estômago. Os oito bacuris estão dormindo, amontoados pelas colchas espalhadas pelo chão.

Veste sua bermuda já quase transparente, de tanto uso. Um dia já foi uma calça de brim. Uma camiseta de malha onde ainda consegue se ler, ou adivinhar, “Deputado Federal – J. Gonzaga – 1397” no que já foram um dia letras vermelhas garrafais.

Em silêncio toma um gole do “café” que Maria lhe preparou; espia dentro de uma lata algumas bolachas, pensar em tirar uma, mas resolve contar primeiro e desiste. “Mal dá pros meninos.”

Abre a porta do barraco, o sol vai ainda baixo, mas os raios lhe incomodam a visão. Estende os braços o bastante para alcançar o caniço encostado na parede externa, sob o tanque recolhe seu puçá e aquele resto de balde, que conseguiu apanhar na última enchente, sabe-se lá de onde veio, que importa?

Na soleira, calça seus chinelos de dedo, suspira desanimado e balbucia para a mulher “estou indo”. De dentro ela responde “vai com Deus” e ele bota pé no caminho, desviando das valas de esgoto a céu aberto e dos montes de lixo amontoados por todo lado. Dali até o ponto onde ainda a poluição não matou todos os peixes é uma caminhada longa, quase uma aventura, a que ele se dispõe sem muita coragem, mais com resignação que com fé.

Ganha a beira do asfalto após alguns minutos. Por ali pelo menos a caminhada é menos árdua, menos obstáculos, embora sempre o cuidado de não ser atropelado por um desses loucos que estão sempre cortando caminho pelo acostamento. Mas essa preocupação parecia não lhe assaltar nessa quinta-feira, uma vez que tinha os olhos postos no chão, como a contar os passos, as pedras do caminho ou as do próprio infortúnio. De vez em quando levantava a cabeça como a medir a distância para a trilha que lhe levaria ao rio.

E foi num desses de vez em quandos que teve a visão.

De súbito pareceu-lhe destacar-se entre a manada enfurecida de automóveis um em especial. Negro, brilhante, silencioso, rápido como uma flecha. No assento da frente um sujeito engravatado, quepe cobrindo o cocuruto. No traseiro, outro sujeito engravatado,folheando um jornal com olhar impaciente, cenho franzido, cara de quem queria engolir o mundo.

Disse consigo mesmo, que ali, mesmo que quisesse dizê-lo a alguém, alguém não havia que lhe pudesse dar ouvidos: “Isso é que é vida! Imagine só! O sujeito voando num carrão que dá quase dois do meu barraco, de motorista, ar-condicionado...” – e parou por aí, porque a sua imaginação não conseguia conceber o luxo de assentos de couro, injeção turbo concentrada ponto a ponto, blindagem, câmbio fliptronic, essas coisas.

“No mínimo está indo pro aeroporto, pra estar passando por aqui a essa hora. Daqui a pouco está no avião, uma aeromoça linda (ele ainda fala aeromoça) chega ao seu lado e pergunta: aceita um uísque, senhor?! E ele simplesmente faz que sim com a cabeça, sem levantar os olhos de seu jornal. Chegando lá (lá é sempre um bom destino pra quem destino certo não tem) tem outro carrão esperando, e vai prum escritório cheio de tapetes, umas secretárias lindas e sorridentes: bom dia, doutor! Como foi de viagem?! E vai se sentar na sua cadeira de chefe, dar ordens a torto e a direito, gritar com algum funcionário mais lerdo e sentir que dali comanda o mundo.

E eu aqui, dois anos e meio sem um emprego decente, dando graças a Deus quando pinta um biscate melhorzinho, comendo o pó dessa estrada como desjejum e tendo que andar léguas e léguas até chegar ao único ponto do rio onde a poluição ainda não destruiu toda a vida. Depois contar com a sorte ou com a inocência dos peixes, que nem todo dia é dia de pescador, pra ver se consigo levar alguma coisinha pra dar de comer pros moleques em casa.

Sim senhor! Isso é que é vida!”

Os olhares dos dois se cruzaram por uma fração de segundo.

Depois nunca mais se viram,

Nenhum comentário:

Postar um comentário