sexta-feira, 22 de maio de 2009

PEQUENA FÁBULA QUASE MODERNA

Fim de tarde, quinta-feira de maio, hora do rush.

Aquele momento em que a luz do sol (é, na cidade grande ainda se tem idéia do que seja a luz do sol, pelo cinza mais vivo da perene nuvem de carbono) ainda não esmaeceu por completo e a luz amarelo chumbo dos postes ainda não é capaz de dizer a que veio; aquele momento em que nos convencemos peremptoriamente de que precisamos de mais betacaroteno em nossa dieta; enfim, em que tateamos meio às cegas pelas ruas da cidade, meio sem saber de onde viemos e completamente sem saber para onde vamos.

Lá vai ele, entre carros, buzinas e muita gente sem rosto, por uma calçada da grande avenida, quando de repente um estalo o faz parar. Algo de muito estranho captado por sua parca visão periférica:

- Um Lobisomem!!!

- Perdão, mas o senhor falou comigo?

Perplexo, os olhos querendo saltar das órbitas, ele tenta coordenar a respiração e articular as palavras.

- Você é um… lobisomem! Eu só posso estar ficando louco! Minha ex-mulher estava certa – enfia a mão no bolso, pega o celular e começa a percorrer a agenda – preciso mesmo voltar a ver meu terapeuta. – Isso tudo sem tirar os olhos esbugalhados da face do interlocutor impossível.

- Meu senhor, eu tenho certeza de que não o conheço, o que não é surpresa nenhuma nesta cidade de pedra, mas permita-me dizer que o senhor está se deixando levar pelas aparências, o que pode ser uma fonte inesgotável de mal-entendidos.

Desistiu de encontrar o telefone do psiquiatra, enfiou novamente o telefone no bolso do paletó. Ao inferno o psiquiatra! Estava diante de um momento único e não o desperdiçaria com explicações sobre projeções arquetípicas de figuras do imaginário popular como personificações de nossos medos, angústias, aspirações, bem como uma fatura imensa para pagar e uma receitinha azul. Poderia mesmo ser devorado a qualquer instante por aquela figura grotesca que lhe dirigia a palavra de maneira afável e bem articulada.

- Me desculpe, mas é que eu sempre ouvi histórias a seu respeito, mas sempre achei que fossem fruto da mente imaginativa dos mais velhos. Aliás, dizer que “sempre ouvi” é um exagero. A última vez foi há décadas, quando ainda morava no interior, era ainda uma criança que acreditava em muitas coisas que foram se esvaindo à medida em que a realidade me penetrava dura e cruelmente. Eu sinto muito, mas acho realmente que estou ficando maluco e que daqui a instantes só o que ouvirei será a sirene da ambulância do sanatório…

- Não se preocupe com isso, meu amigo! – e aqui a conversa já começa a ficar mais amistosa no trato, como forma de conter a exaltação do interlocutor. – A bem da verdade, estou deveras habituado a esse tipo de reação. E, se não for um abuso de liberdade de minha parte, sugeriria que continuássemos nossa conversa em algum lugar mais reservado. Há um café muito interessante a uma quadra daqui, em que poderíamos nos sentar e conversar mais à vontade. No mínimo daríamos algum tempo para que esse trânsito infernal se dissipe, se é que isso é possível.

- Pronto! – pensou o homem. – Lá vem o bom e velho lobisomem com seus ardis pra cima de mim. Daqui a pouco dá o bote e me devora. – Mas estava decidido a ir até o fim com essa loucura, pelo menos uma vez na vida. No mínimo seria uma manchete interessante nos jornais do dia seguinte : “EXECUTIVO É DEVORADO POR LOBISOMEM”.

- É uma idéia excelente! Ao café!

Uma vez devidamente sentados e degustando seus fumegantes capuccinos, entabulam uma conversa de velhos amigos que se reencontram após longa ausência.

O lobisomem conta que viera de uma grande família humilde do interior; que fora obrigado desde muito cedo a prover o próprio sustento e o dos irmãos menores, uma vez que o que o pai fazia na roça mal dava para o arroz com feijão; que muitas vezes perambulara à noite pelas desertas estradas do rincão natal, como forma de amenizar o sofrimento por tantas privações vividas; que sua aparência devia-se a uma combinação genética muito comum entre os de sua família, fruto de uma miscigenação que se desencadeara num passado remoto entre imigrantes açorianos e irlandeses; que frequentara com muito sacrifício a escola primária da aldeia onde vivia, caminhando quilômetros sob sol e chuva, para ocupar seu humilde banco escolar em busca das letras que fariam dele o homem (???) que hoje é; que para chegar à escola muitas vezes cortava caminho pela mata, o que lhe encurtava o percurso em algumas horas; que fora, como tantos outros, mais uma vítima do êxodo rural, pelo nada ou muito pouco que o governo fazia pela fixação do homem no campo; que, claro, sentia saudades da vidinha simples na terrinha, aonde procurava voltar pelo menos duas vezes por ano, para visitar a querida mãezinha e os irmãos que por lá ficaram (o pai falecera muitos anos antes – “Sinto muito!”); que trabalhara em muitas ocupações na cidade grande, esforçando-se por graduar-se em Economia; que hoje mantinha um pequeno escritório de assessoria financeira, contando com uma razoável carteira de clientes; que se casara, tinha mulher e dois filhos e conseguia lhes prover conforto e dignidade; e, por fim, que nutria um desejo de voltar para a terrinha natal quando se aposentasse, terminando seus dias perto dos seus.

O homem conta que, também oriundo de uma família humilde do interior, desde muito cedo nutrira planos de mudar-se para a cidade, estudar, ser alguém na vida; conquistara sua independência financeira ainda muito jovem, destacando-se entre os trainees da empresa onde estagiara, uma multinacional do ramo de empreendimentos imobiliários; que fora agraciado com uma importante promoção ao concluir o curso de Administração, o que lhe permitira galgar um nível de vida mais confortável, realizar os planos de casar-se, constituir uma família, dar a sua mulher e filhos o conforto e a segurança com que sempre sonhara; que hoje, após uma série de cursos de especialização e um MBA em Gestão Empresarial, ocupava uma vice-presidência na mesma multinacional onde iniciara sua carreira, gozando de excelente situação financeira e de um invejável status social; que se divorciara da mulher após dez anos de um casamento aparentemente feliz; que hoje eram quase bons amigos; que os filhos (dois, também) viviam temporariamente com ele, enquanto a ex-mulher concluía um mestrado em Sociologia em uma universidade francesa; que conhecera algumas mulheres interessantes ao longo da sua vida de divorciado, com alguns affairs mais duradouros, mas que nunca se envolvera em um compromisso mais sério; enfim, que era um homem realizado, que prezava, acima de tudo, sua liberdade.

Rápida olhadela no relógio, aquela cara de perplexidade de quem pensa “Já?!”, um pigarro quase imperceptível e os dois se despedem amigavelmente. Fora, sem sombra de dúvida, um encontro muito interessante. Trocaram cartões e deixaram o café com um caloroso aperto de mãos, cada um retornando ao seu caminho e à sua vida ao deixarem aquele aconchegante café que era quase um oásis no centro daquele tumultuado deserto que era a cidade.

Naquela noite, à mesa do jantar, o homem conta maravilhado aos seus filhos o inusitado encontro que tivera com ninguém menos que o Lobisomem.

Naquela noite, à mesa do jantar, o lobisomem conta maravilhado aos seus filhos o inusitado encontro que tivera com um homem livre.

As crianças tiveram muita dificuldade para dormir, naquela noite.

2 comentários:

  1. Caro amigo de espírito livre,
    Escrevo-lhe para externar minhas confraternizações.
    Numa época não muito distante, em que, a imaginação, a ciência e a cachaça, estavam encurraladas dentro de minha caixóla desmiolada, também tive um encontro pra lá de fenomenal com a sra Mula-sem-Cabeça.
    Confesso-lhe que hoje, após ler seu conto, lembrando-me, como se fosse um sonho da noite passada, pairando em minha mente, do som do coaxar dos sapos no brejo em que me meti, para fugir de tão aterradora visão, sinto-me triste por não ter tido a mesma sorte em receber uma xícara de café. Mula mal educada!
    A vida é breve, a consciência é fluida, e convido-te meu querido amigo, a ir conhecer uma cidadezinha que povoa minha imaginação, uma tal de Colares, que fica em Belém (o fofoqueiro Mor, te explica melhor, pergunte pra ele,.. chame agora pelo nome deste linguarudo, olhando para o alto, de sua tela, e com as forças mais poderosas de sua preguiça digite o nome deste oráculo que atende por google).
    O que faremos nós dois lá? Tentaremos com todas as forças e recur$o$ sermos abduzidos por alienígenas. Não, por favor não ria, (ainda não).
    Após muitos tempo gasto com filmes, seriados, e depoimentos de humanos transloucados, consegui juntar as peças do quebra-cabeças e descobri o verdadeiro segredo dos seres que estão entre nós, inclua ai o seu amigo de café e a minha amiga de pinga. Eles realmente tem um plano maior. Pra te contar a verdade é um plano enorme. Explicarei:
    Vamos as premissas:
    1- Ninguem sai enquanto algo está bom.
    2-A festa só termina quando acaba a cerveja.
    Logicamente:
    A Mula-sem-cabeça, e o Lobisomem são seres alienígenas, que estão numa rave!
    Ninguem entra e ninguem sai!
    E, se sair ta tão chapado que não vai lembrar de nada, (esta aí a explicação para as perdas de memória dos que retornaram)!
    Os convites só estão disponiveis em Colares/Belém.
    Te espero lá, mas chegue logo, porque se não,... vou ter que beber toda a cerveja quente que a mula trouxer pra mim! E, ja te peço novamente, não demore, o lobisomem ta querendo literalmente me comer, neste estado em que me encontro, ainda não decidi se é bom ou ruim...
    Bjs..................,( soluço),
    da...................,( soluço),
    amiga............. (cambaleante)
    ........................(Tira a mão dai lobisomem)
    Lú ...................(Agora pode rir da desgraça alheia)

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  2. Credo!!!
    Sobrou um tiquim dessa cachaça não???
    Bjos!!!

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