sexta-feira, 22 de maio de 2009

ROMANCE "INCOMEÇADO"

Sentou-se à frente do computador e pôs-se a divagar. Olhava o nada, com aquele olhar perdido de quem deseja encontrar sabe-se lá o quê; onde, então, nem se fala... há muito que o desejo de dar asas à imaginação e colocar no papel suas idéias lhe assaltava, sempre nas horas mais impróprias – assim deve acontecer com os grandes gênios, pensava – e com os loucos, pensamos nós.

Estava decidido de que seria um romance, e convencido de toda sorte de motivos para fazê-lo, ainda que todos inconfessáveis. Primeiro, obviamente, pela importância do cargo. O status de romancista lhe seduzia sobremaneira; nada de crônicas que se possam ler em dois minutos, ou poemas que, para serem compreendidos, levariam um time de psiquiatras e uns tantos outros loucos. A um conto, ou alguns, poderia até deixar vazar, de vez em quando, mas pensava grandioso, agora. A começar-se alguma coisa, que se o faça em grande estilo. Suas idéias, que sempre quisera colocar no papel, mereciam um romance. Capa dura e tudo mais.

Ainda carecia de título, mas estava convencido de que este se mostraria aos poucos, ao longo do desenvolvimento de sua obra-prima. Não desejava circunscrever seus personagens, sua trama, decretando um título logo no início do processo de criação. Não, senhor... se a obra vai se criando a si mesma, num crescendo irrefreável, que tratasse, pois, de nomear-se também. Colocava-se agora na posição de mero porta-voz de uma criação que transcendia o criador, verdadeiro mártir da literatura.

“A tarde caía lentamente em Broughtonville. No sopé da montanha eternamente coroada de neve, William fitava o horizonte e rememorava os últimos dias de sua vida, que lhe pareciam agora uma eternidade.”

Duas frases e já se via sendo aplaudido no programa do Jô. Dois blocos de entrevistas e no final, “um beijo do gordo”. Releu o que seria o início de sua epopéia, e algo não lhe agradou... Backspace, backspace, backspace... delete. Começa tudo outra vez...

“Cai a noite lentamente em Westertonshire. A luz moribunda do dia se mistura às trevas nascentes, tingindo as nuvens e causando uma estranha sensação em William. Um brilho diferente surge em seu olhar. Do sopé do Monte Whitney, à mercê do vento gelado daquele fim de outono, rememora os últimos momentos de sua vida, que lhe parecem agora uma eternidade.”

- Estamos progredindo! Já temos quatro frases! – levantou-se em busca de um café, colocou Beethoven no CD player, que o momento era solene e merecia cerimônia, e voltou para sua tela de cristal líquido. Releu. Em voz alta. Não era aquilo...

- Westertonshire? De onde diabos saiu esse nome? Tá certo que eu precisava de um nome inglês bem britânico. Mas Westertonshire é quase uma blasfêmia.

Estava pensando no futuro. Vai que Hollywood se interessa em transformar seu clássico nascente em um grande épico do cinema, e não conseguia conceber a grande tela exibindo uma Westertonshire à sombra de um Monte Whitney. E esse tal de William não estava ajudando muito... William de quê, afinal de contas? O que foi que esse William fez de tão importante? E que diabos está fazendo no pé do Monte? Não! Definitivamente não estava ali pra escrever a história de um William que nem sobrenome tinha.

O café estava gelado na garrafa térmica. Fora passado de manhã (ou será que foi ontem?). Experimentou um gole e deitou o resto na pia. Estava intragável. Melhor uma dose de scotch; combinava mais com o clima britânico que queria imprimir a sua obra. Esquecendo-se, porém, que a última dose do Johnny que guardava para as ocasiões especiais se fora na última vez que o cunhado o visitara. A última e todas as outras. Marcou o texto, “deletou” tudo.

Aquela página em branco à sua frente começava a irritá-lo. Pior, uma página que sequer existia, não podia tocar, cheirar, amassar, rasgar. Ainda arriscou uns quatro inícios, mas cada vez mais impaciente com aquele William, que só fazia olhar pro horizonte. Definitivamente precisava não de um outro nome para seu personagem, mas de outro personagem. Que aquele William não dava nem pro começo.

Nada mais lhe vinha a cabeça. Aquele Beethoven já lhe soava inconveniente, uma zombaria sobre a sua impotência. Desligou-o. Sentou-se novamente diante da tela branca... e dentro de sua cabeça uma outra tela branca. Que horas devia ser aquilo? Os olhos ardiam do sono que lhe minava aos poucos os pensamentos.

Num misto de raiva e mágoa interior, apontou o ponteiro do mouse para o X vermelho no canto superior direito da tela.

- Maldita máquina! – imprecou, quando a impertinente teve a audácia de lhe perguntar: “Deseja salvar as alterações em Documento 1?” – Não! Peremptoriamente negava a salvação ao detestável Documento 1.

E foi dormir.

Nenhum comentário:

Postar um comentário