segunda-feira, 15 de junho de 2009

ERA UMA VEZ UM JARDIM...


Era uma vez um jardim…


Não era um desses jardins de capa de revista, exuberante e harmonioso, fengshuizado e photoshopado. Um dia fora muito bem cuidado, quando a sua criadora ainda esbanjava saúde e vitalidade. Mas hoje, ali no quintal dos fundos daquela casa antiga, era apenas um jardim comum, onde raras vezes alguém pisava.


Era, portanto, o ambiente perfeito para que a vida tomasse conta. E vida não faltava ali.

Dona Joaninha passeava suas cores fortes entre as folhagens, silenciosa e sempre muito discreta. “Seu” Percevejo, apesar dos odores que vez por outra exalava, exasperando os vizinhos, exibia seu verde muito vivo, muitas vezes confundindo-se com a vegetação. As formiguinhas, sempre laboriosas e mudas, passavam pra lá e pra cá, numa azáfama incessante, sempre trocando confidências entre si, mas geralmente alheias a tudo que lhes ocorria à volta.

Um escaravelho lustroso aparecia de vez em quando, não se sabe de onde; suas estadas eram sempre curtas, mas nunca despercebidas, que um bicho de tal porte e robustez não se deixa de notar facilmente.

Dominando a pequena lagoa (sim, a dona da casa mandara construir uma lagoa artificial onde outrora plácidas carpas japonesas exibiam sua preguiçosa majestade, bons tempos aqueles!), um pequeno sapinho amarelo, de olhos muito arregalados e temperamento instável, alternava momentos de profunda introspecção imerso na turbidez da água parada com outros de grande estardalhaço, com seu coaxar agudo e repetitivo a ensurdecer todos os passantes.

Mas quem mandava mesmo no pedaço era o Sr. Beija Flor, com sua alada empáfia, seu minúsculo peito coberto de penas em matizes verdes, azulados e prateados, seu majestoso bico pontiagudo e seu nervoso zunzum, a passar freneticamente entre flores e bichos durante todo o dia, exercendo a função que se arrogara naquele manso jardim: patrulheiro da estética e das boas aparências.

Apraziam-lhe sobremaneira as reuniões, onde esbanjava ordens e críticas (eram sua especialidade) a tudo e a todos.

- Sr. Percevejo, lamento ter que repreendê-lo publicamente (era muito polido o Sr. Beija Flor), mas o Conselho reuniu-se e votou uma moção contra o odor que o senhor vem exalando com demasiada freqüência nos últimos dias. Portanto, gostaria de sugerir que o senhor se matriculasse em um curso de boas maneiras e prestasse maior atenção aos salutares hábitos de higiene pessoal! – e o Sr. Percevejo apenas assentia, cabisbaixo. Não adiantava discutir com o “chefe”, embora ninguém soubesse de que Conselho ele invariavelmente enchia a boca para falar.

- Senhora Formiga Operária número 4537, é meu dever tornar público o desagravo deste Conselho ao não comparecimento, mais uma vez, de Sua Majestade, a Rainha, a este evento de vital importância à nossa sociedade (a rainha nunca comparecia, o que sempre irritava o Beija Flor, que detestava tratar com subalternos)! – e a operária permanecia em silêncio, balançando nervosamente as quatro perninhas sob a mesa e pensando em quantas folhas deixava de carregar enquanto escutava aquela baboseira.


Naquele dia o líder da bicharada estava especialmente eloqüente e enfático:

- Senhores moradores, as atribuições do meu cargo me obrigam a trazer à discussão um assunto da maior relevância à manutenção da estética e da boa aparência em nossa sociedade. É com grande desprazer que trago ao conhecimento das senhoras e dos senhores que nosso jardim foi recentemente invadido (nesse instante apagam-se as luzes, suspense na sala, apenas a luz transparente de um projetor sobre uma tela branca ilumina o ambiente) por uma asquerosa LAGARTA (e surge então sobre a tela uma foto em close de uma lagarta verde, como muitas outras que há por aí, com seu corpo gosmento e disforme, antenas que parecem chifres, seu ar pachorrento).

Os membros entreolharam-se, sem muito entender ou dar importância, e o Sr. Beija Flor prosseguiu em seu discurso inflamado, informando dos riscos que tal invasão representava à beleza do sítio em que habitavam, que tanto lhes custava para manter sempre belo e harmonioso; de como era importante reprimir exemplarmente todo e qualquer tipo de invasão de seres estranhos àquela sociedade, face ao risco de se disseminar uma onda migratória de indivíduos asquerosos; de que a tolerância para com tais abusos poderia, mesmo, culminar em uma ação radical por parte dos humanos, no sentido de promover a erradicação de pestes, o que traria efeitos nocivos e desagradáveis a todos os moradores.

A arenga prosseguiu acalorada por longos minutos, ao fim dos quais concluiu dramaticamente o Sr. Beija Flor:

- Proponho, como medida de emergência, em nome do bem de nossa sociedade, que realizemos uma votação em favor da expulsão da horripilante (e torceu o bico) LAGARTA de nosso jardim. – e todos permaneceram mudos, uns com o olhar perdido em um ponto qualquer da sala, outros quase cochilando. – Aqueles que forem favoráveis à moção que propomos, que permaneçam sentados e em silêncio.

Ninguém falou nada e o presidente da sessão deu-a por encerrada, com um ar triunfante e só não diremos um sorriso nos lábios por não esquecermos que a uma ave nos referimos.

Na manhã seguinte, bem cedinho, que essas coisas não são de esperar, parte o Sr. Beija Flor com seu peito estufado, em busca da infame lagarta, que encontra a tentar escalar o tronco de uma velha amoreira. Sem muitos rodeios ou delongas, comunica a decisão sumária e unânime do egrégio conselho de moradores daquele jardim de declarar a senhora lagarta “persona non grata”, decidindo pela expulsão imediata e dando-lhe um prazo até o pôr do sol daquele dia para que partisse e não mais retornasse.

Dona Lagarta, pobrezinha, que muda estava, muda escutou e muda permaneceu, nada entendeu daquela sentença proferida com escárnio por um beijaflor que vira passar voando algumas vezes por si em sua curta estada pelo jardim. Só não deu de ombros porque ombros não tinha; estava habituada ao escárnio e à execração, ela que sempre buscara pautar sua vidinha na total discrição, para não incomodar ninguém com nada mais que apenas sua feiúra.


Mas já que a meio tronco da amoreira estava, resolveu subir mais um pouco, dar uma última olhada no jardim onde pensara poder passar em paz seus dias, comer algumas folhinhas, que em poucas horas empreenderia nova caminhada sem destino certo, sem saber quando poderia contar com outra refeição. E subindo absorta em seus pensamentos, chegou ao mais alto galho, de onde avistava boa parte da cidade que teria que cruzar em sua busca por um novo lar.

De repente um torpor irresistível toma conta de seu mirrado corpo. Para não despencar daquela altura, agarra-se com firmeza a um galho, tentando lutar contra o sono e a queda. Sua cabeça girava vertiginosamente e aos poucos suas forças foram se esvaindo, entregando-se nossa heroína à própria sorte, ou quiçá à própria morte.

Desfaleceu, entrando num estado profundo de letargia, sono sem sonhos. A morte devia ser assim, foi o último pensamento que lhe ocorreu.

Nos dias que se seguiram, a vida transcorreu normalmente no pequenino jardim. Cada bicho cuidando de sua própria vida e o Senhor Beija Flor da vida de todos. Pavoneava-se a todo instante, pelo excelente serviço prestado à comunidade: eliminar a iminente invasão das asquerosas lagartas verdes e gosmentas.

Os dias se foram passando e o tempo, como o tempo sempre faz, foi legando ao esquecimento o terrível destino de nossa querida amiga lagarta, de quem nunca mais se soube o paradeiro.
Dias mais tarde, e olha que dia de bicho demora muito mais a passar que o nosso, novo alarme: uma sombra passeava pelo piso do jardim, demorando-se aqui e acolá.

Inicialmente pensou-se em um grande pássaro predador, daqueles que há muito não apareciam por ali. Um tanto alarmada, a bicharada tratou de adotar as medidas de precaução cabíveis, procurando um tronco ou buraco no chão onde se esconder. Do Senhor Beija Flor, de quem se esperaria um pulso firme também nesta situação de emergência, comprovada ou não, ninguém teve notícia. Diz-se mesmo que foi o primeiro a desaparecer.

A sombra foi diminuindo, diminuindo, até que, aos poucos, uma pequena jóia mostrou-se descendo placidamente do céu, agora já ao alcance da visão de nossos aterrorizados amigos: uma borboleta, das mais lindas que já se vira sobre a Terra (é um exagero, decerto, que a Terra, prum inseto, será uma abstração. O fato é que por ali jamais aparecera tão bela.). Os raios de sol lhe refletiam nas asas, projetando reflexos em vários tons de azul e dourado, provocando um deslumbramento em todos os bichos ao redor, que a essa hora já estavam todos aglomerados em torno da belíssima aparição, com exceção do Sr. Beija Flor, que permanecia bem escondido sabe-se lá onde.

- Seja bem vinda, Sra. Borboleta! – disseram alguns. Outros apenas mantiveram-se boquiabertos diante de tamanha beleza.

Quando pôde ouvir de longe um tom de quase normalidade no burburinho do jardim, quando antes esperava gritos e lamentos desesperados, eis que o Sr. Beija Flor resolve desentocar-se para tomar pé da situação e, naturalmente, assumir o comando.

Abrindo caminho entre a bicharada, para que pudesse chegar ao centro da multidão que se formara, deparou-se com a majestosa Sra. Borboleta, que gentilmente conversava com todos os que dela se acercavam, respondendo com humildade e doçura a todos os curiosos. É claro que arregalou os olhos ao deparar-se com a esfuziante beleza que irradiava da inesperada visitante. Como claro também é que, como seria de se esperar, fez o que pôde e o que não pôde para ocultar sua estupefação.

- Boa tarde! – pigarreou. – Venho na condição de líder desta humilde comunidade (e como a palavra humilde, vinda de seu bico, soava volumosa…) oferecer-lhe as boas vindas. Chamo-me Beija Flor e gostaria de colocar-me à sua disposição para lhe apresentar o lugar e fazer o que estiver ao meu alcance para que sua estada seja das mais agradáveis.

- Boa tarde, Senhor Beija Flor. Muito obrigada pela gentileza, mas creio que já nos conhecemos. E, quanto ao jardim, gostaria de lhe informar que já me é familiar.

É óbvio que jamais ouviríamos o nosso orgulhoso (e agora com algumas pitadas de inveja e despeito) amigo dizer: “como, eu jamais me esqueceria de um encontro com tamanha majestade e beleza”. Mas que foi o que ele pensou, isso com certeza foi. Em vez disso:

- É possível que sim, e perdoe-me por não recordar, mas quer dizer que a senhora já esteve por estas paragens antes?

- Na verdade foi aqui que nasci.

- Oh, sim?! Que feliz ocasião, então, de registrar que a boa filha à casa torna.

- Sim, deveras. Embora sinta ter que lhe informar que desde meu nascimento, jamais deixei este lugar. Em minha breve vida de borboleta, aqui nasci e me criei.

- Ora, deve haver algum engano…

- Engano nenhum, Sr. Beija Flor. Acontece que até poucos dias atrás eu não passava de uma lagarta, a fazer nada mais que rastejar e comer. Algo me passou, antes que eu pudesse obedecer à sua ordem de deixar este lugar, por decisão unânime da assembléia dos cidadãos. Acabo de despertar de um sono profundo, e estou pronta pra acatar a decisão da maioria.

Nesse instante, após um burburinho, toda a bicharada dirige um olhar de reprovação ao Sr. Beija Flor, que não consegue esconder sua perplexidade.

Esta história poderia terminar com uma generalizada vaia a um derrotado Beija Flor enxotado pela bicharada, deixando cabisbaixo o jardim e o trono. Com a Sra. Borboleta sendo aclamada pela população a nova líder daquele grupo, usando de sua humildade e sabedoria para governar e aplicar a justiça em seu sentido mais amplo e belo.

Só que inda vai longe o dia em que os sábios, humildes e justos ocuparão os tronos dos jardins por esse mundo afora.

Inda vai longe. Mas esse dia chega…

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