sexta-feira, 17 de julho de 2009

EUSÉBIO, O SOMBRA


- Alô, Cida?! Aqui é Dirce, querida. Como vai? Por aqui tudo mais ou menos, querida. Estou te ligando pra ver se você ainda tem o número daquele detetive que você contratou no ano passado, pra seguir o Miranda. Como é mesmo o nome dele? Peraí que estou anotando: Eusébio, o Sombra?! Que horror! E você recomenda os serviços dele? É, você já deve estar imaginando que eu ando desconfiada, né? Pois é. Mas eu prefiro não falar sobre isso agora, querida. A gente se vê no clube na sexta-feira e eu te conto tudo pessoalmente. Um beijo, querida! Tenho que desligar que estão batendo à porta e a empregada está no play com o Afonsinho. Tchau, fofa!


Pelo olho mágico vê um homem de meia altura, rosto anguloso e barba por fazer, óculos raiban modelo aviador com cara de mais de 15 anos de uso, um chapéu panamá de feltro marrom desbotado na cabeça, gravata marrom com bolinhas brancas meio frouxa no colarinho. Pára, pisca os olhos e confere: ele está mesmo lá. E de sobretudo, apesar do calor. Abre a porta meio receosa.

- Pois não?!

- Bom dia! A senhora deve ser Dirce Monteiro Pimenta, brasileira, casada, esposa de Afonso Albernaz Pimenta.

- S-sim… e o senhor, quem é?

- Eusébio, o Sombra, detetive particular, um vosso criado, senhora. – tira os anacrônicos óculos escuros e faz um breve meneio com a cabeça.

- M-mas como?!

- Eu tenho meus métodos, madame. Gostaria de ver meu currículo? – e estende uma pasta que parece tão espessa quanto aquelas Bíblias de capa dura e lateral dourada que estão sempre abertas por aí.

- Não, não acho que seja necessário. Eu já colhi algumas referências sobre o senhor e me parecem suficientes. Mas como foi que o porteiro deixou que o senhor subisse sem ser anunciado?

- Não sou do tipo que se anuncia, madame. Coisas da profissão, a senhora entende… - e dá uma piscadela, levantando leve mas perceptivelmente o canto direito da boca. Os dentes são amarelados.

- O senhor está suando em bicas. Por que não tira o sobretudo? – e quase se arrependeu do comentário; sabe lá Deus o que aquele homem esconderia sob aquela indumentária.

Ele agradeceu, retirou o sobretudo, entrou, sentaram-se, enquanto ele comentava que subir 14 andares pelas escadas não fora nada divertido.

- Oh! Algum problema com o elevador ou isso é alguma técnica profissional de investigação?

- Claustrofobia, madame. Mas vamos ao que interessa. Suponho que esteja desconfiada que o senhor Afonso a esteja traindo e que gostaria que eu reunisse provas suficientes de sua conduta imoral para que a senhora possa depená-lo em um futuro processo de separação. Corrija-me se eu estiver equivocado.

- Uhum!

- Imagino que a senhora venha baseando sua desconfiança em algumas mudanças no comportamento de seu marido e é importante que me relate que mudanças seriam essas, pra melhor condução do nosso trabalho. – puxa um bloquinho surrado de um dos bolsos da calça, um cotoco de lápis e é todo ouvidos a Dirce.

- Na verdade, tenho notado algumas mudanças bastante sutis no Afonso…

- Hum! Essas são as piores!... Mas prossiga.

- Voltou a jogar tênis, tem falado em se matricular em uma academia e o que é pior: tenho achado que ele anda muito alegrinho ultimamente.

Ele não anota nada. Apenas assente com a cabeça e tenta disfarçar as furtivas olhadas para as belas pernas cruzadas dela.

- São sinais claros, madame. Mas vamos desvendar esse mistério em dois tempos. Alguma mudança no quesito cor e modelo de cuecas?

- Não. Ele sempre foi muito tradicional com o vestuário. Samba canção branca de algodão.

- Certo. É do tipo cuidadoso, preocupado em não deixar rastro. Talvez sejam necessários três tempos.

Combinaram os honorários e os detalhes da operação: a comunicação entre eles ficaria restrita ao mínimo imprescindível durante as investigações e nunca via telefone celular. Todos os telefones utilizados pelo traidor seriam grampeados, para gravar conversas comprometedoras. E sigilo absoluto com relação a todos os resultados e material capturado.

Detalhes acertados, parte nosso destemido defensor da família, da moral e dos bons costumes, em busca de sua presa. Trata-se de um idealista, que, naturalmente, trabalha pelo dinheiro, afinal de contas tem mulher e prole pra sustentar. Mas é certo que desempenha com prazer suas funções, pois acredita na família como instituição e na fidelidade conjugal como um dos pilares fundamentais da sociedade civilizada, cristão convicto e tradicionalista que é.

Passada uma semana, toca a campainha do apartamento de Dirce Monteiro Pimenta. A empregada está com o Afonsinho no play. Ela vem atender a porta de robe de chambre. Está se preparando para sair.

Lá está Eusébio, o Sombra, que parece ter passado a semana inteira sem aparecer em casa pra trocar de roupa. O suor empapa-lhe a fronte e o colarinho, a barba está mais por fazer que na primeira visita e, ao tirar os óculos escuros, Dirce nota olheiras profundas.

- Entre, entre, depressa! – num sussurro. – O prédio está infestado de câmeras.

- Com licença… - a voz dele é pesada, arrastada. O ar grave, pensativo.

- Madame, trago boas e más notícias e como é praxe, darei a má notícia primeiro.

Ela arregala os olhos, cobre a boca com as mãos, tenta dizer alguma coisa, mas ele a interrompe. É um profissional. Está acostumado a lidar com situações assim.

- O senhor Afonso Albernaz Pimenta mantém uma relação extraconjugal com uma mulher, com quem tem encontros amorosos com freqüência bastante regular. – abre um envelope pardo surrado (seria o mesmo do currículo?) e começa lhe passar as fotos em diversos ângulos do carro do marido traidor entrando em vários motéis em dias e horários diferentes daquela semana.


Quatro encontros em uma semana. Sabe-se lá como, ele entrega até mesmo uma foto tirada dentro do quarto de um dos motéis, de qualidade bastante prejudicada, em que um casal aparece copulando. – Esta foto está um pouco pobre em qualidade, mas eu posso assegurar que se trata do seu marido…

- Não precisa, seu Sombra! Eu reconheceria essa bunda branca e enorme até mesmo em foto de satélite. E essa mania de transar de meias o desgraçado não perde nem com a amante! O senhor fez um excelente trabalho e agora já tenho tudo de que preciso pra depenar aquele bastardo! Um minutinho só, que eu vou pegar minha bolsa e lhe fazer um cheque.

Entra pisando duro pelo corredor, some por alguns instantes e volta com os olhos vermelhos, o robe em desalinho e a bolsa na mão. Só então se lembra de perguntar:

- O senhor disse que tinha uma notícia boa pra me dar. Que tipo de notícia poderia ser boa, numa ocasião dessas?

Ele dá um sorriso amarelo, triste e pensativo.

- A senhora só vai me pagar a metade do valor combinado de meus honorários.

- Mas por quê?! O senhor fez um excelente trabalho. Rápido, discreto, eficiente, merece até uma bonificação por isso.

- Eu prefiro não entrar em detalhes sobre o motivo do abatimento, se a senhora me permitir. – sua voz é triste, quase um fiapo.

- Bom, vocês, detetives, são mesmo cheios de mistérios. Se o senhor prefere assim, aqui está o seu cheque.

Ele dobra o cheque sem olhar o valor, mete no bolso do sobretudo, agradece pela preferência e dirige-se lentamente à porta, que ele mesmo abre. Antes que ele saia, ela se lembra de uma última pergunta:

- Seu Sombra, eu já ia me esquecendo: e quem é a vagabunda?

Já com o pé direito fora do apartamento, a mão esquerda sobre a cara maçaneta dourada, ele se vira lentamente na direção dela, ergue os olhos do piso e responde em tom quase inaudível:

- A vagabunda… é a minha mulher.


E sai…

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