quinta-feira, 30 de julho de 2009

VIVENDO DAS LETRAS


Depois de algum tempo de relativo sucesso, dois livros publicados e algumas colaborações não remuneradas semanais em periódicos de circulação regional, decidiu que era hora de largar todo o resto e dedicar-se apenas às letras. Não ficara rico até o presente momento, esfalfando-se de trabalhar nas mais variadas atividades. Portanto tinha muito pouco a perder, cria. Estava convencido de que a carreira literária decolaria em sua plenitude, vôo de condor, que o único que lhe faltava para tal era tempo.

Convencera-se de que sua incipiente carreira era um monstrinho recém nascido, exigente e faminto, com a pequena bocarra sempre aberta, chorando por cada vez mais alimento, carinho e cuidados. E de que essa imagem era terna e altamente significativa. E abria sempre um sorriso largo, com os olhos rasos d’água, quando imaginava o pequenino monstro e seus primeiros trinados.

Estava decidido: o mundo precisava ver aquele monstro crescer, avolumar-se, conquistar seu espaço. Sacrificaria seus próprios interesses imediatos em nome dessa sacrossanta missão. Estava preparado para o trabalho árduo e inglório.

Tratou de comprar um computador novo, o último grito da tecnologia mundial. Uma confortável cadeira giratória, mesa, impressora, escâner (deve ser assim que se escreve, embora fique muito estranho). Internava-se durante horas no pequeno cubículo de sua casa que arbitrariamente chamava de escritório e onde nenhuma visita era bem vinda. No máximo e a muito contragosto abria a janela de vez em quando, para que entrasse um pouco de ar fresco. Ademais, permanecia hermeticamente fechado no que considerava seu santuário das belas letras.

Atacava com furor o teclado, escrevendo sobre tudo e qualquer coisa. Não havia limite para a sua capacidade criativa: versos, trovas, cordel, rimas e métrica, hai kais, prosa poética, crônica, conto, contículos. Gostava do humor. Cria-se perspicaz, irônico e ácido e acreditava que o humor era, muito mais que literatura, uma forma de levar a cabo sua missão de abrir os olhos do mundo para o que parecia que só ele estava percebendo.

O projeto do romance continuava martelando em sua mente. Algo sólido, denso, uma trama bem urdida, com personagens fortes, odientos um e sedutores outros, com um desfecho memorável e impactante. Algo que lhe pudesse render a pecha de maldito (venerava a idéia) e fosse digno de um Nobel (embora estivesse certo de que o prêmio seria dado a alguma oobra de menor valor e brilhantismo, por mera perseguição do comitê, o que, por si só já lhe valeria mais que o próprio prêmio). Mas enquanto tais personagens não surgiam bailando convidativos em sua frente, implorando por uma vida, atacava impiedosamente todos os estilos que considerava menores.

Perdeu completamente a noção de tempo e espaço. Passava dias a fio trancado em seu pequeno santuário (que a mulher já começara a chamar de mausoléu, ao que ele respondia com um leve menear de cabeça e um inaudível muxoxo; já era a crítica a infiltrar seus agentes dentro de seu próprio lar), esquecendo-se de comer, tomar banho, barbear-se, essas coisinhas básicas que parecem insignificantes até o dia em que deixamos de fazê-las.

Das despesas da casa, contas a pagar, colégio dos filhos e todos esses pequenos detalhes que tornam a vida tão normal nem tomava conhecimento. Acreditava-se no nirvana da literatura, pairando acima de todas as vicissitudes mundanas.

Até que um dia abriu de supetão a porta de seu escritório, saindo como se sufocasse: os olhos muito arregalados, os cabelos em total desalinho, a camisa aberta, as mãos comprimindo o pescoço e a boca arreganhada, como a exprimir um grito que não se ouvia, o que muitos chamariam um grito surdo, mas que talvez fosse melhor representado por um “grito mudo”.

Tateava pelos móveis da casa, não enxergava , esbarrava em tudo. E balbuciava, repetindo aterrorizado:

- A crise! A crise!

Sim, fora tomado pelo pior dos males que podem acometer um escritor: a crise criativa. Esgotara todos os assuntos possíveis, criara um sem-número de personagens e situações, das mais sem graça às mais cômicas. Até que um dia deparou-se com uma tela completamente imaculada à sua frente e não conseguia digitar uma palavra que fosse.

Em vão tentava buscar em jornais, revistas, sites de fofocas, televisão, algo sobre o que escrever. Mas a sua mente lhe devolvia um silêncio tão ameaçador quanto mil canhões calados.

Após vários encontrões com os móveis da casa, encontrou a saída, escancarou a porta, a luz do sol lhe cegava, cobriu os olhos, mas avançou heroicamente, como quem soubesse aonde ia. Precisava tornar à vida, reencontrar o mundo, o trânsito, os carros, a natureza, ver gente (ainda tinha uma vaga lembrança do que se tratava), buscar no movimento do mundo real alimentos para o seu monstrinho, que já não era mais tão pequeno nem inofensivo.

Partiu. Desapareceu sem deixar rastro.

A mulher só não entrou em desespero porque nem se lembrava mais de como era ter um marido. Mas sentiu-se na obrigação de comunicar seu desaparecimento às autoridades, família e amigos.

Fiquei tocado com a história, afinal de contas poderia (e como) ter acontecido comigo, e iniciei uma tímida investigação particular, usando de todos os meios possíveis para encontrá-lo.

Semana passada me chegou a notícia de um indigente que acampara há semanas na porta da Academia. Após vários alarmes falsos, ainda decidido a não esmorecer, resolvi investigar.

A imagem me chocou: um indivíduo macérrimo, pele e osso, coberto de andrajos do que um dia foram roupas casuais, descalço, o rosto macilento, um olhar vago, perdido, fixo num ponto qualquer entre o nada e lugar nenhum, vastas barba e cabeleira que o assemelhavam a um piteco.

Embora fosse impossível um reconhecimento visual, resolvi me aproximar e puxar assunto; ainda tinha esperança.

Parei à sua frente, esbocei um sorriso, balbuciei o que seria o nome de meu procurado.

Ele levantou os olhos lentamente, arregalou os olhos enevoados, escancarou a boca quase desdentada e implorou desesperado:

- Um trocadilho, pelo amor de Deus!

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